Master é um arco muito peculiar e que, desde a época em que foi lançamento, não deixa de gerar desconforto em alguns espectadores devido ao segredo que revela sobre o passado do Doutor, quando ele ainda era uma criança em Gallifrey. 49º episódio da linha Big Finish Mensal, Master fecha uma trilogia de vilões clássicos (completada por Omega e Davros) e, visto juntamente com o episódio 50 (Zagreus), forma uma tetralogia de aventuras focadas em vilões, reunindo 5º, 6º, 7º e 8º Doutores num épico comemorativo dos 40 anos de Doctor Who, saga vilanesca cujas sementes foram plantadas algum tempo antes, num episódio chamado Neverland.
A ação principal se passa no futuro distante, em uma colônia terráquea chamada Perfugium, planeta protegido pela Galactic Heritage, uma organização criada pelo Conselho Galáctico para impedir que Luas e Planetas fossem comprados ou invadidos antes que sua população nativa morresse ou desenvolvesse viagens interestelares. O ponto de vista narrativo aqui simples, com o 7º Doutor assumindo o olhar do próprio espectador sobre o que acontece nesse lugar peculiar, que lembra muitíssimo da Inglaterra Vitoriana, com direito a referências perfeitamente inseridas de O Médico e o Monstro e ao modus operandi ou contexto de Jack, o Estripador e seus crimes.
O tema central da história é uma discussão moral, ética e filosófica a respeito da maldade, da culpa e do impacto negativo que grandes traumas de infância pode fazer a uma pessoa, seja impulsionando-a para a psicopatia e violência, seja impulsionando-a para a reparação culpada (mesmo que inconsciente), curando-se com o passar dos séculos ao passo que o indivíduo faz o melhor que pode para salvar e defender quem precisa. No núcleo duro dessa discussão que se estende por muito tempo e é trabalhada no texto de Joseph Lidster a partir de consequências vindas de um acordo com a própria Morte, conhecemos um momento triste e terrível da infância do Doutor juntamente com o Mestre, em Gallifrey, quando eles se escondiam, choravam e sofriam bullying de um garoto chamado Torvic. Eu terminei essa parte do arco com lágrimas nos olhos.
O que mais me encanta nessa história é a sua capacidade de expor elementos interessantes em todas as camadas, seja no relacionamento do Mestre-putrefato — e sem memória de ser o Mestre — vivido maravilhosamente por Geoffrey Beevers (The Keeper of Traken) com os amigos Victor (Philip Madoc, que viveu diversos papéis na Série Clássica, sendo o principal o War Lord, em The War Games) e Jacqueline (Anne Ridler, que também esteve em DW no passado, em The Wheel In Space); seja nas linhas de conversa do Doutor com “O Homem”, que na verdade é a Morte disfarçada e a progressiva revelação de Jade, a governanta do Mestre que também é a Morte disfarçada. O clima de tensão num ambiente vitoriano coroa a história na base da surpresa e do aprofundamento do vilão a partir de coisas que aparentemente não tem tanto a ver com ele.
Estudos de personagens são um grande desafio para qualquer roteirista. Nesses episódios que trabalham aspetos dos vilões clássicos de Doctor Who na Big Finish, tivemos inúmeras informações e facetas apresentadas, mas o que melhor nos traz uma possibilidade de entendimento a partir da raiz é este soberbo arco com o Mestre. Cheio de excelentes interpretações, muita dor, remorso e sacrifício em um dos roteiros mais teoricamente bem estruturados da série (e que ganha ainda mais pontos porque explora um dos personagens mais enigmáticos e difíceis do show, a tiracolo também mostrando um outro lado do Doutor que não conhecíamos) Master é certamente o guia definitivo para quem quer entender as raízes do relacionamento entre o Doutor e esse seu mais antigo amigo e mais sofrido inimigo. Uma saga inesquecível.
Master (Big Finish Mensal #49) — Reino Unido, outubro de 2003
Direção: Gary Russell
Roteiro: Joseph Lidster
Elenco: Sylvester McCoy, Geoffrey Beevers, Philip Madoc, Anne Ridler, Charlie Hayes, Daniel Barzotti, Joe Bassett, Gary Russell
Duração: 132 min.