Entre 2013 e 2018, a cidade de Al Ghouta, subúrbio de Damasco, na Síria, viveu uma terrível situação de sítio durante a Guerra Civil Síria, sendo bombardeada quase que diariamente pelas forças aliadas a Bashar al-Assad. É de dentro dessa situação impossível que o novo documentário de Feras Fayyad, responsável pelo igualmente importante Últimos Homens em Aleppo, traz uma narrativa dolorosa, difícil de assistir e mais difícil ainda de analisar sem deixar que os sentimentos sobre o que vemos na tela transbordem para o texto.
O foco é na jovem pediatra síria Amani Ballour que é também a diretora do hospital improvisado conhecido como “A Caverna”, ligado a diversas partes da cidade por um emaranhado de túneis construídos ao longo dos anos como a única forma razoavelmente segura de locomoção pela região devastada. Determinada e extremamente corajosa, Amani é amada por todos no hospital, inclusive o cirurgião bem mais velho Alaa, que defere a ela todo o respeito possível mesmo quando outros homens se espantam que uma mulher seja algo mais do que uma esposa que deve ficar em casa cozinhando e cuidando dos filhos. O preconceito causado pela religião intolerante perpassa toda a narrativa e, ainda que não seja o foco do documentário, é mais um elemento que torna ainda mais complexa a atuação de Amani.
As imagens são impressionantes. Duras, mas não explícitas – Fayyad talvez acertadamente tenha evitado manter na fita as cenas mais pesadas em um esforço para universalizar sua obra -, elas ao mesmo tempo destroem e reconstroem nossas esperanças na humanidade. De um lado, os bombardeios incessantes, as mortes desnecessárias de crianças, o ataque com armas químicas e a falta de comida e medicamentos desnudam a crueldade de uma guerra criminosa e particularmente destruidora para a população civil e, pior, sem indicação de algum tipo de resolução. De outro lado, o incansável trabalho de Amani e de toda a equipe do hospital, que fazem absolutamente de tudo para trazer um semblante de esperança para a população massacrada, inevitavelmente, mesmo diante dos horrores, transmitem a resiliência da humanidade diante do pior. É impossível não sorrir com Amani e com a quase sempre alegre Samaher, responsável, dentre outros, pela comida da equipe, nos momentos singelos de felicidade quando uma vida é salva ou quando um aniversário é comemorado com pipoca e muita imaginação.
Ao mesmo tempo, é impossível não sentir um profundo incômodo por termos o privilégio de ficarmos revoltados no conforto de nosso sofá, olhando para uma tela de TV. Entra ano e sai ano, documentários dessa natureza são lançados, apreciados e premiados e as situações que denunciam não só não melhoram, como pioram e nós, do lado de cá, nada de efetivo fazemos. Claro que cada um de nós vê outros problemas mais sérios e imediatos ao nosso redor imediato e a preocupação sobre a tragédia Síria, de repente, parece menor. Mas é assustador testemunhar a magnitude de tudo e, por consequência, nossa completa passividade ou, na grande maioria dos casos, nossa “revolta de rede social”. O que fazer? Não tenho essa resposta e talvez apreciar obras como The Cave seja sim parte de uma solução de longo prazo. Pelo menos é essa a esperança.
Mas, retornando às imagens selecionadas por Fayyad a partir de filmagens com celular e câmeras fotográficas, é assombroso notar sua qualidade, com um trabalho de fotografia excepcional diante das circunstâncias. Há um zelo visual que é raro de se ver em obras semelhantes, o que me faz imediatamente imaginar quantas horas (dias!) de filmagem não foram cortadas na ilha de edição, o que torna a técnica de Fayyad ainda mais apurada e digna de apreciação e agradecimento.
Além disso, o cineasta sírio sabe contar uma história. Ele não é didático e parte da premissa que o espectador já tem um conhecimento mínimo sobre a história recente de seu país. Seu foco é ser um observador da tragédia e da força de vontade dos funcionários do hospital tendo Amani como uma espécie de guia para não permitir qualquer desvio narrativo significativo. E ele é bem sucedido em até mesmo criar suspense sobre o que acontecerá ou deixará de acontecer com todos ali, mas sem “baratear” seu enfoque. Muito ao contrário, a abordagem de Fayyad é constantemente digna e sofisticada, mantendo a solenidade que a gravíssima situação exige.
The Cave é mais um documentário que é um retrato de nosso tempo: um mundo conectado, mas fraturado em que horrores acontecem ali, bem ao lado. E, na grande maioria das vezes, tudo o que podemos fazer é observar, passivos, a desgraça alheia. Sempre foi assim na História da Humanidade, não tenham dúvida, mas o nosso acesso a imagens é sem precedentes. O cuidado que temos que ter é não deixar que o “acesso confortável” aos horrores nos deixe entorpecidos.
The Cave (Idem, Síria/Dinamarca/Alemanha/Catar/EUA – 2019)
Direção: Feras Fayyad
Roteiro: Alisar Hasan, Feras Fayyad
Com: Amani Ballour, Samaher, Alaa
Duração: 107 min.