Muitas indagações surgiram durante os momentos em que tive a oportunidade de rever Sangue em Hollywood, slasher tardio lançado em 1988, fase decadente do subgênero saturado pela indústria depois de tantos assassinatos, máscaras criativas e motivações vingativas esquizofrênicas. Machado de Assis foi uma delas. O leitor deve se perguntar por qual motivo eu pensei num dos escritores que ocupam o centro de nosso cânone literário ao passo que assistia uma produção tão ruim. A ironia foi o que me moveu. Marco do bom uso da figura de linguagem em nossa história literária, me perguntei se a aberração escrita e dirigida pelo desconhecido James Shyan era ironia ou se as pessoas estavam mesmo achando que a produção era algo possível de ser chamado de filme.
Pensei: “esses aí não leram Machado de Assis e também não sabem o que é ironia”, pois Sangue em Hollywood é uma das piores coisas que já tive a oportunidade de ver, por motivos diversos, de complexa enumeração, tamanha a quantidade de falhas. Além de não saber usar o recurso irônico para suturar os problemas de sua história, James Shyan narra pela milésima vez a velha vingança de alguém ou um grupo que sofreu um atentado e retornou para se vingar, deixando surpreso quem achava que tudo havia acabado com a morte. Mas vamos lá. Primeiro, o elenco é ruim, a trilha sonora é desprezível, a direção de fotografia não “vale nada” e a história, bem como o responsável por sua execução, dão azia intelectual. Desta forma, o leitor pode pensar: o que escrever sobre o filme em questão?
Explico. Sou daqueles que seguem uma linha de “crítica antropológica”, isto é, não importa o que será achado durante a escavação, afinal, qualquer produto é passível de análise, reflexão e compreensão do momento histórico em que se encaixa. O que importa é a história, seja deprimente ou surpreendente. Por meio destas raridades que só foram lançadas em VHS aqui no Brasil há eras, deflagramos movimentos cinematográficos que nos permitem compreender determinados elementos que compõe a história geral da sétima arte. Neste caso, Sangue em Hollywood reflete os caminhos do subgênero slasher em 1988, estilo de produção que ganhou forças novamente apenas em 1996, com o mestre Wes Craven e seu Ghostface.
Mas, então, qual a trama de Sangue em Hollywood? Vamos ao processo de explicação: a Família Clouster foi exaurida de sua moradia há 16 anos. Por qual motivo? Simples: uma equipe de filmagens incendiou a residência durante uma gravação e ninguém deu socorro aos membros do clã supostamente mortos. Alguns anos depois, Brett Standfish (Bobby Johnston), Liz (Francine Lapensee) e um grupo de jovens chegam ao local para fazer um curso de atuação. Todos querem ser atores e o final de semana será de aprendizado e claro, muito sexo, bebida e outras distrações do gênero.
O que acontecerá com essa visita ao local onde a família vaga há tempos em busca de justiça? Mortes. Sangrentas? Não, muitas em off screen, provavelmente por questões de censura. Ademais, perseguições anêmicas, final girl que não sabe gritar ou lutar, conversas para revelações do passado ao redor de uma lareira, pegadinhas com sexo e rapazes idiotas em busca de uma transa rápida. Engraçado observar que se o filme tivesse sido produzido por nomes de peso do setor slasher, provavelmente teríamos algo mais interessante para assistir. James Shyan demonstra que não é um idiota de marca maior.
Ele sabe, inclusive, que tudo o que está sendo encenado é um lixo, pois possui referencial dramático para isso. O crânio que surge em cena, jogado para lá e para cá, achado de um dos personagens que depois descobrimos ser um elemento “importante para a história traz um elo direto com duas produções, teatro e cinema, uma canônica e outra mega popular: Hamlet, de Shakespeare e Sexta-Feira 13, de Sean S. Cunningham. No primeiro caso, sacamos a relação com o tema vingança e também com brincadeiras pífias com o pentametro iâmbico da tragédia shakespeariana quando alguém na floresta diz “mijar ou não mijar, eis a questão”.
Já na referência ao slasher do dia do azar, podemos observar que o crânio possui o mesmo “teor dramático” que a cabeça da mãe de Jason no desfecho de Sexta-Feira 13 Parte 2, uma das tantas referências presentes no filme. Há também o lago, a casa próxima da floresta, o sexo no lençol estirado numa zona deserta, local onde um casal é assassinado durante a diversão. Essa cena, inclusive, com uma tesoura de jardinagem, faz referência direta ao pior filme da franquia do não exterminável Jason, Sexta-Feira 13 Parte 5 – Um Novo Começo.
Para o nosso desfecho, a reafirmação do óbvio. Sangue em Hollywood não é ruim apenas pelo roteiro, mas também por outros problemas de ordem estética. A maquiagem de Kelly Ford-Zachrau não convence e o trio de assassinos vagantes da floresta são ridículos, não passam de pessoas sujas de fuligem. A direção de fotografia de Robert Burchall parece reforçar ao público constantemente as referências por meio do “ponto de vista” que emula Evil Dead – A Morte do Demônio, mas o resultado é tão caótico quanto o filme em seu todo, pois o plano em questão não condiz sequer com o possível olhar dos antagonistas, afinal, eles não andam arrastados pelo chão, tampouco são forças sobrenaturais que atravessam vertiginosamente a floresta.
O clã Clouster é na verdade uma espécie de família molusco, conseguem andar mais vagarosamente que qualquer outro assassino mascarado dos anos 1980. A condução musical de Emilio Kouderer é aceitável, mas não faz diferença numa realização cinematográfica tão ruim. Curiosidade mórbida. Depois dos créditos finais começaram a subir, o filme é todo recapitulado durante dez minutos, um possível recado delirante dos realizadores ou da distribuidores, supostamente alegando que Sangue em Hollywood é memorável. Um terrível engano.
Na curva final da reflexão, Machado de Assis surge novamente, desta vez, para reforçar a ironia da minha iniciativa em rever a produção 23 anos depois da primeira e única incursão em VHS. Depois de tanto tempo tentando encontrar um filme que a minha sabotadora lembrança fixou como um marco da infância, percebi que só mesmo o isolamento diante do bullying de meus colegas de escola ou a total falta de sensibilidade estética de uma incipiente pré-adolescência poderiam me fazer lembrar com saudosismo de um filme que deve ter me acompanhado numa noite de sábado qualquer pelos meados de 1995. Ironias do destino que a ficção às vezes nos apresenta, mas que diante de casos como esse, demonstram a possibilidade do seu jogo no bojo dos acontecimentos vida real. Que os céus nos livrem de filmes como Sangue em Hollywood!
Sangue em Hollywood (Hollywood New’s Blood/Estados Unidos, 1988)
Direção: James Shyman
Roteiro: James Shyman
Elenco: Bobby Johnston, Francine Lapensée, Joe Balogh, Martie Allyne, Al Valletta, Lynne Pirtle, Ken Denny, Kent Abrams, Allen Francis
Duração: 90 min