Começou com a DC Comics anunciando pelo selo Vertigo (antes da notícia de que este seria definitivamente encerrado em janeiro de 2020, passando o manto para o DC Black Label) a criação de uma série tendo Jesus como super-herói. Sim, Ele mesmo. O Cristo. O Nazareno. O Salvador… Pela sinopse oficial, O Cordeiro de Deus viria à Terra pela segunda vez (fora das profecias do Apocalipse) e dividiria um apezinho com Sun-Man, mais um super-herói genérico satirizando o Superman. Tudo nessa história cheirava a ironia e sarcasmo, o que irritou os cristãos ligados ao CitizenGO, que fizeram petição, pressionaram a DC, gritaram e… conseguiram o que tanto desejavam: o projeto foi cancelado.
Comunicados de imprensa posteriormente emitidos por Mark Russell (autor do excelente As Crônicas do Leão da Montanha e do medíocre Flintstones – Vol. 1) e pelo desenhista Richard Pace, diziam que eles não encontraram nenhum problema dentro da DC (editora), nem na chegada nem na saída do projeto, inclusive diante das renegociações sobre os direitos da obra, o que nos leva a crer que partes mais poderosas do conglomerado é que apresentaram maior resistência a esta alfinetada cristã. Mas então Inês já era morta e os artistas seguiram em frente com o material, encontrando o perfeito lugar de ressurreição na pequena editora AHOY Comics… e aqui está, a primeira edição do projeto! Antes de seguir com a crítica para obra, porém, eu devo fazer alguns importantes comentários sobre a ~ polêmica ~ em torno da produção dessa revista, um assunto sobre o qual sempre quis falar aqui no site, mas o timing das coisas que puxariam este assunto nunca foi perfeito para mim. Agora chegou a minha vez.
O Silêncio dos Culpados
O real problema em torno de Second Coming foi o inicial silenciamento solicitado por um grupo de pessoas que se sentiram ofendidas quando uma arte (a Nona Arte, os quadrinhos) se propôs zombar de algo que lhes é extremamente importante, ou seja, sua religião. Claro que isto não abre um precedente — porque ele já existe há décadas –, mas reafirma o molengo flan de sensibilidades onde dores individuais ou de um grupo falam mais alto que a liberdade de expressão. Eu penso que a produção artística, qualquer que seja, deve ter a liberdade de existir. Quando a tal obra estiver no mercado, eu posso ir conferir se quiser e fazer tudo aquilo que eu acho que devo fazer: textão na internet, processo legal, vídeo de xingamento, crítica elogiosa, discurso em cima do muro, palmas ou pontapés.
É evidente que defendendo essa posição, eu tenho a plena noção de que constantemente serei bombardeado por todo tipo de exposição artística (pode colocar “artística” entre aspas também, se quiserem) que vai pisotear e escrachar grupos dos quais eu faço parte; pessoas, líderes ou figuras históricas que eu gosto, admiro, sigo ou defendo; ideias que me moldam como pessoa e norteiam a minha visão de mundo. A grande questão é: eu preciso ser honesto e coerente o bastante para permitir e defender que os que querem sacanear tudo isso, possam fazê-lo… para que eu também tenha a liberdade de fazer o mesmo com o que é importante para eles! E sim, todos nós fazemos isso! Mas é impressionante que em cada canto político que a gente olha, há bolhas de indivíduos censurando o escárnio de um lado enquanto fazem a mesma coisa com os símbolos, signos e visões de mundo do outro. A hipocrisia é uma verdadeira desgraça, não é mesmo?
Fato: o que é importante para algumas pessoas em uma sociedade, não necessariamente é para outras. Claro, todos deveriam respeitar os gostos uns dos outros, mas vamos deixar o papo de mingau-de-aveia-com-flocos-da-Malásia e olhar para o mundo como ele é. No cotidiano, quando enfrentamos contrariedades ou vemos indivíduos, grupos e posturas muito opostas ao que a gente acredita, respeito é a coisa que menos levamos em consideração na hora de nos manifestar. E não precisa descer o nível para isso não! Eu, por exemplo, amo o recurso da ironia, do sarcasmo e da piscadela maldosa que muitas vezes ofendem muito mais do que se eu tivesse fotografando uma orgia de Hipogrifos albinos hermafroditas num quarto cheio de pinturas de um Maomé travesti beijando um musculoso peludo chamado Jamal.
Se excluirmos as ações definidas por lei como manifestações criminosas (questão que exige estudo de caso, mas não vou me estender aqui), temos um mundo inteiro para sacanear. O que devemos ter em mente é: se a gente faz isso, devemos deixar que o outro também faça conosco. E claro, ser inteiramente responsável pelas coisas que falamos, afinal, liberdade de expressão não se resume a fazer o que quiser, jogar o microfone e simplesmente desaparecer como se nada tivesse acontecido. Significa você expressar-se e estar preparado para defender, explicar ou justificar sua posição e receber o revés (da chacota à discordância embasada) que ela vai gerar. Porque se nós temos o direto de sacanear os outros, os outros também têm o direito de rebater com tudo a nossa sacanagem. O que não se deve defender é o silenciamento de uma produção artística que não está infringindo lei alguma. Ela pode ser insensível, imoral, blasfema, desrespeitosa, inútil e mais dezenas de outras coisas negativas que se possa pensar. Mas deixe que ela exista! E então, exerça também a sua liberdade para gritar contra ela.
Esta primeira edição de Second Coming começa muito, muito bem. O roteiro de Mark Russell é irônico, explorando questões ligadas a passagens bíblicas que, para a proposta do quadrinho, caem como uma luva. O autor retira o elemento de fé dessas passagens (afinal, não é um quadrinho feito para se ler na catequese, não é mesmo?) e ironiza o sentido da criação do homem e da mulher (amigos de Deus ou destinados à servidão a Deus?), a colocação da Árvore do Bem e do Mal no meio do Jardim do Éden (Deus realmente achou que isso ia dar certo ou ele já sabia que não daria e mesmo assim plantou?) e toda a História da humanidade a partir da visão bíblica, só que mesclada a certas variantes científicas, lembrando en passant a linha de abordagem para esta mesma questão feita por Darren Aronofsky e Ari Handel em Noé. No caminho, ainda encontramos coisas hilárias como o FORMATO dos frutos da Árvore (Richard Pace não perdoa); a cara de Adão descobrindo que tinha pênis e uma piadinha familiar e geopolítica envolvendo Cush, neto de Noé e Nimrod, filho de Cush.
A impressão que o leitor tem é que a HQ será construída de forma cuidadosa, como uma ironia à forma como a Bíblia narra a História do mundo, até chegar no Jesus-herói. Mas não demora muito e os primeiros problemas de ritmo aparecem, assim como a tentativa do autor em ligar esse tipo de abordagem engraçada a uma muito ruim. Toda a ideia para JUSTIFICAR a segunda vinda de Jesus à Terra, para ser super-herói ao lado de um outro super-herói chamado Sun-Man é simplesmente terrível, perdendo o tempo certo das piadas e forçando uma porção de situações que só conseguem dar pequenos quadros de descanso para o leitor, mostrando Jesus em sua primeira saída ao lado do Sun-Man.
E eu que imaginei que este quadrinho seria tão gostoso de se ler quanto o aplaudível mangá Saint Young Men, que mostra Jesus e Buda dividindo um apartamento em Tóquio. Ou tão perturbadoramente fascinante e blasfema quanto a excelente Preacher. Ou que tivesse a inteligência de abordar o mundo contemporâneo frente à figura de Jesus, como aconteceu em Punk Rock Jesus. Ou que abalasse as estruturas das figuras religiosas como Robert Kirkman e Tony Moore fizeram em Battle Pope. No entanto, não há nada disso aqui. Depois do bom começo, Second Coming só tem de bom alguns quadros de Jesus sendo fofo e terminando a HQ com um discurso deslocado, com um único momento emotivo e uma lição moral abruta que não leva a lugar nenhum. Sem contar que a ligação dele com o Sun-Man é simplesmente terrível, à parte o fato do próprio Sun-Man ser igualmente terrível e às vezes engraçado, de tão terrível que é.
Quer achincalhar? Manda ver! Mas faça isso bem feito. As religiões e suas mitologias podem nos trazer ótimas histórias em quadrinhos, seja representando a Bíblia tal e qual ela é, seja criando uma ficção para a existência dos Deuses, seja adaptando toda uma mitologia para o mainstream, do norte ao sul da Europa; seja em nosso próprio quintal ou avacalhando o que der na telha, de qualquer lugar do mundo. A única coisa realmente inaceitável nesse processo é querer fazer graça sem saber como. De más histórias, os quadrinhos já estão cheios. Somar uma trama blasfema a esse pacote apenas pelo prazer de irritar os outros é tão patético que não vale sequer a petição dos dodóis da CitizenGO. Se continuar sendo publicada, vai precisar de muito para fazer a coisa dar certo.
Second Coming #1 (EUA, 10 de julho de 2019)
Editora original: AHOY Comics
Roteiro: Mark Russell
Arte: Richard Pace
Arte-final: Leonard Kirk
Cores: Andy Troy
Letras: Rob Steen
Capa: Amanda Conner, Paul Mounts
43 páginas