Sagas nos quadrinhos mainstream são inevitáveis e, no caso da Marvel Comics, ela tornaram-se parte fundamental do modus operandi da editora. Poucas são sensacionais (Guerra Civil, Infinito), muitas são divertidas (Império Secreto, Guerras Secretas de 2015, Desafio Infinito) e outras tantas são tenebrosas (Guerra Civil II, Pecado Original, Guerras Secretas de 1984), mas, no agregado, se não formos levar muito a sério e/ou ficarmos obcecados com os intermináveis tie-ins e/ou esperarmos que as consequências do que acontece nelas sejam perenizadas, as sagas funcionam como uma forma de emprestar uma simpática coesão ao universo de super-heróis, colocando todos ou quase todos lutando em apenas uma direção, quando não for um grupo contra o outro, claro. E é melhor ainda quando a saga é utilizada como a culminação de um projeto de longo prazo, trabalhado ao longo de anos, o que é exatamente o caso aqui.
Jason Aaron começou seu ambicioso projeto envolvendo Thor em 2012, debaixo do selo Marvel NOW!, com o arco O Carniceiro dos Deuses, introduzindo e trabalhando dois “novos” Thors, um do passado, ainda jovem, indigno e empunhando o machado Jarnbjorn; e um em um futuro longínquo, sem um braço e um olho, rei de Asgard e com três netas, mas ainda empunhando Mjölnir, o clássico martelo feito de metal uru. Desde então, o autor tornou Thor indigno, o fez perder um braço, transformou Jane Foster na nova Thor, destruiu Asgardia e Mjölnir e assim por diante, sempre mantendo o personagem em destaque e em constante transformação nas páginas da Marvel Comics. A Guerra dos Reinos é, por assim dizer, o final – ou pelo menos o clímax, considerando as já anunciadas novas publicações que continuam a história – desses sete anos de Aaron a frente de Thor.
No entanto, o que autor escreve é básico, por vezes até burocrático, mas sempre divertido. Do lado técnico, a saga tem a grande vantagem de conseguir ser auto-contida, com uma narrativa coesa dentro das seis edições dedicadas que a compõe, sem que seja vital que o leitor cace os vários tie-ins que foram publicados. Ponto positivo. Da mesma forma, Aaron é cuidadoso ao não exigir que o leitor tenha acompanhado tudo o que se passou com Thor desde 2012, pois seria perigoso tornar a história tão hermética assim, afastando eventuais leitores casuais. Outro ponto positivo. Além disso, a periodicidade quinzenal fez com que a saga inteira acabasse em tempo recorde, de abril a junho de 2019, sem enrolações e atrasos. Mais um ponto positivo. E, finalmente, como abordarei mais para a frente, as edições dedicadas foram, todas elas, escritas e desenhadas por exatamente a mesma equipe, mantendo coesão também nesse aspecto. E sim, você acertou, isso é mais um ponto positivo para A Guerra dos Reinos.
Quando entramos no mérito da história é que percebemos que o que Aaron escreveu não é muito diferente do que, por exemplo, Vingadores vs. X-Men ou Hulk Contra o Mundo, ou seja, basicamente rinhas de galo em escala global. Malekith, um dos mais antigos e recorrentes vilões de Thor, vem semeando guerra há algum tempo, tendo dominado completamente nove dos 10 reinos unidos por Yggdrasil, a Árvore da Vida. O reino que falta, claro, é Midgard, a Terra, e a pancadaria incessante começa com a chegada do enlouquecido lorde de Svartalfheim a Nova York, a cidade que os habitantes do Universo Marvel insistem em continuar vivendo apesar de ser a porta de entrada para todo cataclismo que se tem notícia. Thor, nesse momento, graças a um engodo do elfo negro, está socando gigantes do gelo em Jotunheim e não pode voltar, já que a Ponte do Arco-Íris fora destruída, fazendo com que os heróis da Terra – em linhas gerais, os Vingadores atuais (o que inclui a Mulher-Hulk completamente ensandecida e o Motorista Fantasma), Wolverine, Homem-Aranha e os heróis urbanos (do Demolidor até o Justiceiro), além dos Asgardianos que, como em Fábulas, vivem em um prédio da cidade – tenham que lidar com as hordas de criaturas saídas de O Senhor dos Anéis, como Tony Stark bem aponta. Há, porém, preocupação em mostrar que a guerra é global, com visitas à Europa, América do Sul, China e Austrália, além de menções breves a Atlântida, Oriente Médio e outros.
O problema maior não é exatamente a simplicidade da premissa, mas sim o vazio que ela nos passa em termos de perigo para a Terra. Primeiro, que os deuses me perdoem, mas Malekith nunca foi um vilão de muita categoria e inteligência, pelo que senti dificuldades de engolir sua sana por dominação global. Ele mais parece um daqueles sujeitos amigos do valentão da escola que são os primeiros a correr quando alguém os enfrenta. Depois, a evacuação de Nova York (a única que é efetivamente mostrada) torna a invasão destrutiva só mesmo para os prédios e automóveis. Sem ninguém por ali para ser soterrado por marquises desabando, muito da graça vai embora. Mesmo que eu não esperasse algo do nível de Os Supremos, pois estamos falando do universo normal da Marvel Comics, bem mais leve e exangue, outras circunstâncias e linhas narrativas já trouxeram o horror da guerra diretamente para os civis, algo que inexiste por completo aqui. E, como se isso não bastasse, não há muito perigo nem mesmo para os heróis, já que morte mesmo só há uma, com o restando sendo apenas momentos chocantes que são desfeitos duas páginas depois muito na linha do que vimos em Guerras Infinitas.
Além disso, Aaron por vezes mostra-se muito mais preocupado em criar novas versões dos mesmos personagens ou novas armas do que criar conflitos relevantes, algo que muito provavelmente faz parte do mandamento da editora, sempre procurando vender mais “bonequinhos”, ops, figuras de ação. Claro que é sempre divertido ver o que sai da imaginação dos autores, como foi na já citada Guerras Infinitas, mas a sucessão do uso desse artifício é cansativa.
Sei que parece que estou destruindo o trabalho de Jason Aaron aqui, mas não é verdade. A Guerra dos Reinos não é uma saga espetacular, mas ela sem dúvida é muito divertida e que, por justamente servir como momento de convergência de praticamente tudo que Jason Aaron escreveu sobre Thor e demais deuses de Asgard ao longo de todos esses anos, ela definitivamente tem seu valor. Afinal, não há nada errado em de vez em quando ver pancadaria descerebrada nesse nível com inglês semi-shakespeariano (foi-se a época em que os diálogos de Thor e companhia eram realmente intrincados) saindo de grande parte dos balões de fala. Além disso, o autor dá boa voz aos personagens que resolve destacar, como por exemplo colocando o Demolidor com as funções de Heimdall e o Justiceiro como um dos arautos de Freyja, mãe de Thor. Jane Foster é outra que recebe respeitosa atenção, sendo realmente peça-chave para o desenrolar da trama. É também alvissareiro que, mesmo presentes de forma razoavelmente constante, os heróis “mais comuns” da editora sejam mantidos em papéis que não são muito maiores do que de extras de luxo na saga, como é o caso do Homem de Ferro, Capitão América, Wolverine e até mesmo o Homem-Aranha. Isso abre espaço para os asgardianos e para alguns outros que raramente têm espaço em sagas dessa magnitude.
O que ajuda a elevar a qualidade da saga é a belíssima arte de Russel Dauterman, artista razoavelmente recente nesse mundo dos quadrinhos. Ele começou sua carreira como figurinista na indústria cinematográfica, tendo trabalhado até mesmo em Capitão América: O Primeiro Vingador, entrando na Nona Arte pela Boom! Studios com a arte de Supurbia, de 2012. Depois de trabalhar em duas edições de Asa Noturna, na DC Comics e três de Cíclope, na Marvel, ele e Aaron encetaram uma parceria vencedora no universo de Thor, trabalhando juntos desde 2014. Em A Guerra dos Reinos, Dauterman se solta completamente, arregaçando as mangas para criar páginas deslumbrantes e dinâmicas, sempre mantendo a atenção do leitor com o uso variado de enquadramentos, brincando com a fluidez das páginas e criando transições espetaculares. Além disso, ele maneja muito bem a distribuição de personagens em spreads épicos e muito detalhados, preenchendo e tomando conta dos espaços, mas sempre mantendo foco. Ajuda muito, também, as cores vibrantes de Matthew Wilson que combinam muito bem com a pegada mais leve que Aaron dá à sua saga. Vale também especial destaque para as belíssimas capas principais da série, todas desenhadas pelo veterano Arthur Adams, com cores de Wilson, como a que capeia a presente crítica.
Se tem um ponto para eu reclamar da arte é o quanto me irrita o padrão Marvel de desenhar todos os personagens – mesmo os mais veteranos – como adolescentes impúberes, mas isso é como dar murro em ponta de espada de ébano. Chega a ser engraçado ver Tony Stark e Steve Rogers parecendo garotões, Freyja mais jovial que seu filho e o Demolidor como herói em começo de carreira, eliminando toda e qualquer diferença de gerações entre eles e outros mais novos como se a velhice fosse um pecado ou algo desagradável para os olhos do público mais jovem. Os únicos com aparência mais madura são os carrancudos Wolverine e Frank Castle e, claro, Odin, este, misericordiosamente, mantido como um velho barbado mesmo, como deveria ser.
A Guerra dos Reinos pode não ter a complexidade de Guerra Civil ou Infinito, mas está longe de ser uma rinha de galo tenebrosa como Guerra Civil II ou Pecado Original, esta último do próprio Aaron, que se redime no que se refere a sagas. Por outro lado, apesar de sua simplicidade, é uma história que poderia ser meramente divertida, um passatempo descompromissado, se não fosse o ponto alto de anos de desenvolvimento da mitologia de Thor por seu autor e se não tivesse uma arte tão cuidadosa. Jason Aaron e Russel Dauterman fizeram um ótimo trabalho aqui e, pelo visto, a dupla ainda tem muita coisa a oferecer para o Universo Marvel.
A Guerra dos Reinos (The War of the Realms, EUA – 2019)
Contendo: The War of the Realms #1 a 6
Roteiro: Jason Aaron
Arte: Russel Dauterman
Cores: Matthew Wilson
Letras: Joe Sabino
Capas principais: Arthur Adams, Matthew Wilson
Editoria: Will Moss, Sarah Brunstad
Editora original: Marvel Comics
Data original de publicação: 03 de abril a 26 de junho de 2019
Páginas: 198