Um javali gigante aterroriza o outback australiano matando bebês, mulheres e homens indiscriminadamente. Mais um animal, dentre tantos outros especialmente depois de Tubarão (na era moderna), que ganhou proporções avantajadas e um certo vício por sangue humano, dessa vez trazido para as telonas por ninguém menos do que Russell Mulcahy em seu segundo longa, o homem que, dois anos depois, seria responsável pelo clássico Highlander – O Guerreiro Imortal. Como não imediatamente ficar transfixado por essa maravilha não é mesmo? Pois eu ficava quando, ainda muito jovem em tempos imemoriais, assistia repetidamente a película.
Brincadeiras à parte, Razorback (a tradução brasileira do título original é idiota demais para eu dignificá-la usando no corpo da crítica) é um clássico filme B de monstro que Mulcahy, à época especializado em videoclipes de grandes nomes da música, empresta sua assinatura visual estranha, bebendo de pelo menos duas fontes muito claras: a técnica de mostrar sem mostrar que Steven Spielberg levou à perfeição em seu filme de 1975 e o divertido estereótipo sacramentado em Mad Max que determina que os australianos do interior são equivalentes ao estereótipo dos caipiras americanos, todos loucos desvairados que adoram estuprar mulheres e matar quem e o que quer que seja. E não, Razorback não se passa em um futuro distópico, mas poderia muito bem ser, sem maiores dificuldades, já que as tomadas do diretor indubitavelmente passam essa impressão.
A estética de Mulcahy, que não sem querer usou os serviços de direção de fotografia de Dean Semler, de Mad Max 2: A Caçada Continua, é a de desolação total em terras devastadas pontuadas por esqueletos de animais, poeira, população integralmente masculina com figurinos exagerados, automóveis velhos e modificados, alguns parecendo verdadeiros tanques de guerra e muita névoa de estúdio em paletas de cores alternantes entre o quente e o frio, dia e noite. Se o início da narrativa, depois do prólogo, não levasse o espectador brevemente para Nova York (com apenas uma tomada exterior de cartão postal para fixar o local) no presente, a conclusão é de que estaríamos vendo um filme de um javali mutante do futuro matando gente ensandecida que disputa por gasolina. Mas não se enganem, pois há qualidade na fotografia de Semler e nas tomadas de Mulcahy, com um cuidadoso e convincente trabalho de cenografia que coloca o espectador em meio à ação e que consegue criar uma atmosfera ao mesmo tempo hipnotizante e repugnante.
Mas a beleza bizarra sofre muito com a montagem de videoclipe de William M. Anderson, certamente influenciado pelos comandos de Mulcahy que tenta emular seus trabalhos anteriores para a televisão. Aquilo que veríamos dar certo em Highlander, filme que se entrega à estética de clipes musicais com sucesso (trabalho facilitado, claro, pela trilha sonora do Queen), não funciona nada em Razorback, que é picotado demais e perdido em sua tentativa de ser diferente. Também não ajuda nada que o javali feral (comumente apelidado de “razorback“, daí o título), feito em animatrônico por 250 mil dólares, não convence nem por um segundo quando aparece (e olha que ele só aparece mesmo por alguns segundos) e, quando não aparece, Mulcahy não tem nem de longe o finesse de Spielberg – ajudado pela incrível trilha de John Williams, claro – em criar medo com o que não é visto. Ao contrário, o diretor lida muito mal com o bicharoco e as cenas em que ele está presente, nem que seja em primeira pessoa, com a câmera fazendo seu papel, são banais.
Sei que até agora não ofereci uma sinopse, mas é que o roteiro de Everett De Roche, baseado em romance de Peter Brennan, é de uma simplicidade enorme. Há um javali gigante assassino no outback australiano e Carl Winters (Gregory Harrison), canadense morador de Nova York cuja esposa sumira no deserto quando fazia uma cobertura jornalística sobre massacre de cangurus, parte para investigar. Chega a ser engraçado como De Roche tenta sofisticar a premissa básica, criando um preâmbulo com uma tragédia envolvendo o caçador Jake Cullen (Bill Kerr) e inserindo os mencionados caipiras enlouquecidos, além de um subtexto ecológico chapado e dolorosamente didático, sem que, porém, ele consiga acrescentar peso dramático algum ou mesmo minimamente desenvolver essas camadas. Ao contrário, o texto pula de um assunto para o outro e repete o ciclo sem parar e sem acrescentar nada de realmente novo ou relevante. Pelo menos isso abre espaço para Mulcahy criar algumas boas sequências atmosféricas, incluindo a de um pesadelo lisérgico de Carl no meio do deserto que vale o esforço cinematográfico.
O resumo disso tudo é que o bacon assassino de Mulcahy simplesmente não funciona para além de alguns momentos esteticamente interessantes que prenunciam Highlander. Trata-se de um daqueles guilty pleasures que teria sido melhor ficar apenas na memória afetiva, já que revisitá-lo tornou evidente suas falhas grotescas. Mas vai, não dá para me culpar por ter Razorback na minha lista mental de “filmes favoritos da idade da ignorância” considerando uma premissa tão maravilhosa quanto essa, não é mesmo?
O Corte da Navalha (Razorback, Austrália – 1984)
Direção: Russell Mulcahy
Roteiro: Everett De Roche (baseado em romance de Peter Brennan)
Elenco: Gregory Harrison, Arkie Whiteley, Bill Kerr, Chris Haywood, David Argue, Judy Morris, John Howard, John Ewart, Don Smith, Mervyn Drake, Redmond Phillips
Duração: 95 min.