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Crítica | Eu Sou a Lenda, de Richard Matheson

por Leonardo Campos
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Uma história sobre a imposição e alimentação do medo de alegóricos grupos dominantes. O romance que ajudou na pavimentação da arena zumbi no bojo da cultura pop. Publicado em 1954, o romance Eu Sou a Lenda já foi aos cinemas em diversas ocasiões, dentre elas, o pouco conhecido A Batalha dos Mortos (2007), Eu Sou a Lenda (2007), A Última Esperança da Terra (1971) e Mortos Que Matam (1964), um dos motivos para o seu alcance mais global, haja vista a permeabilidade da cultura visual quando comparado ao acesso literário proveniente da leitura do romance de Richard Matheson.

Alegórico para questões sociais, responsável por contribuir com a popularização dos zumbis e levado em diferentes contextos aos cinemas são algumas das questões que gravitam em torno dessa narrativa que vai além destes detalhes e revela outras camadas que a tornam digna de ser parte integrante do cânone literário. Ao longo das 384 páginas ofertadas pela edição brasileira do Grupo Aleph, Eu Sou a Lenda narra a trajetória de um homem que se tornou o único sobrevivente de uma catástrofe causada por uma bactéria mortal, praga que agiu sem piedade alguma e transformou seres humanos em criaturas noturnas sombrias e sangrentas.

Anteriormente casado, patriarca de uma bela família que ainda incluía a sua pequena filha, o protagonista Robert Neville precisa lidar com a solidão. Para isso, envolve-se em caçadas diárias para investigação, sendo a noite o momento de reclusão diante das criaturas que espreitam os cantos escuros em busca de saciar suas sedes sanguinárias. Recluso, Neville passa o tempo a consumir cigarros e bebidas, acompanhados pela música selecionada de sua coleção de vinis. Intrigado com os acontecimentos pouco explicados, o personagem peregrina cotidianamente em busca de respostas oriundas de perguntas que muitas vezes ecoam no vazio de sua suposta existência solitária.

Longe da interação social comum ao mundo dito normal, Robert Neville é a inversão disso tudo, pois no bojo do caos em que mergulhado, ser humano nada mais é que ser anormal. O encontro com um cachorro até traz alguns momentos de esperança, mas o futuro é desolador, principalmente diante da falta de perspectiva e da dor perante aos acontecimentos do passado. A jornada solitária de Neville é cheia de perguntas sem respostas, incertezas e inconsistências, algo que faz o leitor adentrar na jornada do personagem com afinco e se questionar como seria viver num mundo configurado de maneira tão diferente ao que estamos acostumados.

Diante do cenário desolador, o protagonista precisa compreender que a sociedade anterior ruiu e o que resta agora são versões monstruosas e desumanas de quem ele conheceu anteriormente. Tomado pela abstinência sexual, o herói em questão precisa ser filme com as vampiras que clamam por sua atenção do lado de fora da casa, uma construção que se transformou numa verdadeira fortaleza. Tal como Ulisses na Odisseia, o personagem precisa resistir diante das tentações. Há um amigo seu também, sempre a chama-lo para o lado exterior, na tentativa de atraí-lo para o contato mortal junto às criaturas da noite.

Com breve consciência de sua existência anterior ao momento apocalíptico da narrativa, as criaturas abomináveis conseguem ser afastadas graças ao uso de alho nas proximidades das janelas e portas, recurso que não é/nem precisa ser explicado em detalhes ao passo que os acontecimentos avançam a trajetória do personagem. Parte de uma temível distopia, Robert Neville torna-se uma espécie de cientista amador no interior de sua casa, num contexto histórico permeado pelas incertezas políticas da Guerra Fria e constantes debates sobre a ideia de normalidade, algo que explodiria nos tensos anos 1960/1970.

Diferente dos filmes que se basearam na obra em questão, a trajetória do protagonista é mais interligada com o seu aprofundamento psicológico, em detrimento de possíveis cenas de ação excessivas e conflitos externos extraordinários. Com poucos diálogos, Richard Matheson emula alguns traços narrativos dos clássicos Drácula e Robinson Crusoé, de Bram Stoker e de Daniel Defoe, respectivamente, numa história que ainda deixa espaço para alguns flashbacks esclarecedores para reforçar o tempo presente do enredo, uma poderosa alegoria sobre as pessoas que em determinado momento de suas vidas, sentiram-se deslocadas/inadequadas/dissociadas diante da inversão de valores da “maioria” que o circunda.

De tão atual, a história consegue alcançar o leitor contemporâneo sem grandes entraves no processo de leitura e interpretação. Considerada uma das narrativas responsáveis por dar sustentação ao subgênero do cinema que nos anos 1960, ganhou reforço na interpretação dos zumbis realizadas pelo cineasta George A. Romero, o “pai dos zumbis”, realizador responsável por redefinir a mitologia das criaturas que retornam à vida para caçar humanos incautos, estrutura mítica narrativa que se manteve central na lógica dos filmes e séries com mortos-vivos até os nossos tempos, vide The Walking Dead e correlacionados.

Eu Sou a Lenda (I am Legend/Estados Unidos, 1954)
Autor: Richard Matheson
Editora no Brasil: Aleph
Tradução: Jacqueline Damásio Valpassos
Páginas: 384

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