Home TVTemporadas Crítica | Deadwood – 1ª Temporada

Crítica | Deadwood – 1ª Temporada

por Ritter Fan
1,9K views

O cancelamento abrupto de Deadwood ao final da terceira temporada foi uma das maiores injustiças televisivas já cometidas, especialmente quando lembramos que tudo se deu por questões de disputas financeiras sobre a divisão de lucros e territórios de distribuição entre as co-produtoras HBO e Paramount. Mesmo incompleta, porém, o faroeste realista, violento e boca suja de David Milch continua sendo não só a melhor série do gênero, como também uma das melhores séries já feitas na História da TV, já levando em consideração o ambiente atual em que novas obras de grande qualidade brotam às dezenas a cada novo ciclo.

Mas Deadwood não é o faroeste clássico e não é uma série fácil de se assistir. Se fosse, ela não mereceria figurar no mesmo panteão de divisores de água como Família Soprano, The Wire, Mad Men e algumas poucas outras capazes de desafiar gêneros, desenvolver a contento uma miríade de personagens e de resultar em uma visão fascinante de um recorte de um momento da civilização humana. Afinal, focando no então “acampamento” Deadwood, no que não muito tempo depois seria o estado da Dakota do Sul, antes da anexação aos EUA e passando por cima do tratado com os nativos indígenas em razão da corrida do ouro, a série estuda exatamente o começo da civilização, de como a humanidade sai do caos para a organização, com um mundo pode brotar literalmente do nada em razão de uma força atrativa única, no caso o ouro. Milch queria trabalhar exatamente essa temática macro e, para isso, apresentou um projeto sobre o Império Romano, mas a HBO já estava com Roma em fase de pré-produção, o que o fez olha para dentro dos EUA e escolher Deadwood como o centro de suas atenções.

A cidade, que até hoje existe, não tendo se extinguido ao final da corrida do ouro, foi uma espécie de para-raio que atraiu grandes nomes do faroeste americano como Wild Bill Hickok, Calamity Jane, Seth Bullock e Sol Star, em um momento histórico talvez único na história do Destino Manifesto, do grande mandamento que dizia “vá para o oeste” para o caldeirão de povos europeus que populavam parte dos EUA em busca de riqueza e prosperidade, custe o que custar. Quando a série começa, em 1876, já estamos nos estertores dessa grande expansão em direção ao Pacífico em um território pouco explorado em obras cinematográficas, uma região conhecida como Black Hills onde o ouro acabara de ser descoberto. A “cidade de uma rua” que foi maravilhosa e detalhadamente reconstruída em tamanho real em uma região ao ar livre somente para a série é Deadwood com apenas seis meses de vida, um lugar completamente sem lei e sem ordem que mistura mineradores esperançosos e comerciantes que vivem de “minerar” os mineradores.

O principal desses comerciantes é a mítica – e até hoje razoavelmente misteriosa – figura de Al Swearengen (Ian McShane), dono do saloon/prostíbulo The Gem e efetivo “dono da cidade”, como o mafioso que controla sub-repticiamente todas as operações legais e ilegais que gravitam ao seu redor, por vezes tirando proventos diretamente delas e, por outras, apenas tolerando-as como parte do progresso inevitável. Al prospera no caos, no descontrole, elementos que permitem que alguém como ele tire o máximo proveito de tudo. Em sua direta oposição – e é a partir desse ponto que a temporada parte – temos Seth Bullock (Timothy Olyphant), canadense e ex-delegado de Montana que vai para Deadwood com seu sócio Sol Star (John Hawkes) para tentar a vida com uma loja de equipamentos em geral, de picaretas até vestimentas para mineradores. Seth representa, claro, a lei e a ordem, mas, ao longo de toda a temporada, ele faz de tudo para não representar nem uma coisa nem outra, ainda que sua personalidade ética e moral inevitavelmente e o leve nessa direção.

Mas enganam-se aqueles que poderiam deduzir da reunião do gênero faroeste com a presença de inimigos naturais em uma cidade recém-nascida, mas pujante, que Deadwood é uma série em que a ação clássica do tiroteio ou “bangue-bangue”, dita a narrativa. Isso não poderia ser mais distante da verdade. Apesar de a cidade atrair os tipos mais diversos, grande parte da corja da sociedade da época, tiros são raros e todos eles bem construídos e bem trabalhados na narrativa. Não há balas voando a cada mínima provocação ou grandes atos heroicos ou vilanescos por quem quer que seja. Muito ao contrário e no melhor estilo de Os Imperdoáveis, David Milch desconstrói o mito do pistoleiro, do cowboy e, porque não, do dono de saloon. O que vemos a cada um dos 12 episódios da primeira temporada são vidas duras, frugais, sujas (literalmente) trafegando por uma rua única coberta de estrume, urina e lama tentando construir um futuro. Vemos a esperança nos olhos de cada um e toda a maldade e toda a bondade é relativizada.

Wild Bill Hickok, por exemplo, vivido de maneira estoica por Keith Carradine, simboliza o grande herói do faroeste americano, o grande e invencível pistoleiro lendário que, também de sua maneira e acompanhado de seus amigos Charlie Utter (Dayton Callie) e Calamity Jane (Robin Weigert), resolve tentar vida nova na ebulição aurífera de Deadwood. Mas Hickok, por razões que é possível deduzir de sua postura, de sua vida carregando a culpa de mortes em seus ombros e do peso das exigências de terceiros ao seu redor, não é mais do que um alcoólatra viciado em pôquer que passa o dia e noite torrando até os últimos centavos na jogatina inesgotável do lugar. Minerar ouro pode ter sido seu objetivo em algum momento, mas ele nunca efetivamente teve intenção de arregaçar as mangas. Hickok é o herói trágico que vai para Deadwood encarar seu fim e, no processo, faz amizade com sua alma gêmea ainda não corrompida, Bullock e a temporada trabalha uma belíssima “passagem de manto”.

Mas Hickok é apenas um dos vários personagens que são enfocados nesse começo e uma das coisas que mais impressiona na criação de David Milch é como ele consegue criar arcos narrativos para cada um deles, por mais que um ou outro pareça desimportante ao espectador. Claro que o foco é em Al Swearangen e em Seth Bullock, com os dois atores vivendo, aqui, os pontos altos de suas respectivas carreiras dramáticas. Apesar de posicionamentos antitéticos, os dois são, basicamente, duas faces de uma mesma moeda, ambos “maculados” por uma imagem externa diferente da interna. Se Swearangen pode ser caracterizado como o vilão que manda matar quem quer que seja de maneira brutal, jogando os corpos no chiqueiro de porcos do Sr. Wu (Keone Young), chefão da população chinesa, a atuação de McShane é tocante e multi-facetada, os melhores exemplos disso sendo, claro, sua relação de amor e ódio com a prostituta Trixie (Paula Malcomson), sua amizade respeitosa com seu capanga Dan Dority (W. Earl Brown), o único que realmente o entende, e, principalmente, um brevíssimo momento em que, da sacada de seu estabelecimento, ele verte uma lágrima pela tragédia física que se passa com o simpático Reverendo Smith (Ray McKinnon, em uma atuação absolutamente espetacular). Bullock, o “mocinho por excelência”, por sua vez, esconde, atrás de sua fala educada e de sua postura altiva, uma raiva explosiva que ele mal consegue conter e uma grande conduta hipócrita que é explorada por diversas vezes ao longo da narrativa, com Olyphant encarnando o personagem histórico – que a partir de sua estada em Deadwood tornar-se-ia um grande nome nas lendas do oeste americano – à perfeição e um realismo intenso, em que é possível sentir que estamos diante de uma bomba relógio.

No entanto, muito além de Swerangen e Bullock, Milch rege sua orquestra dando destaque a todos os músicos e não apenas aos virtuoses na primeira fila. Cada um dos personagens “menores” que citei no parágrafo anterior – alguns mais, outros menos, claro – ganham um arco de desenvolvimento completo e significativo, por intermédio de roteiros que trabalham narrativas paralelas que cuidadosamente se entrelaçam, como é o caso do drama de Alma Garret (Molly Parker vivendo uma das poucas personagens de destaque que é fictícia), que vem do leste com o marido Brom (Timothy Omundson) para tentar a sorte grande em um terreno comprado por ele. De uma dona de casa viciada em láudano, ela desabrocha como uma das mais fascinantes personagens da temporada que acaba tendo conexões indeléveis desde com personagens com quem não troca uma palavra sequer, como Al Swearangen, como com Trixie, Charlie Utter, Wild Bill Hickok, Calamity Jane e, claro, Seth Bullock. E o mesmo vale para Cy Tolliver (Powers Boothe), o violento, mas sofisticado dono do saloon/bordel de categoria mais alta que ele abre ao lado do The Gem para surpresa e fúria de Swearangen, e sua prostituta-chefe Joanie Stubbs (Kim Dickens) que deseja a liberdade mais do que tudo.

E eu poderia, aqui, falar de cada um dos “coadjuvantes” que são tão bem abordados e destrinchados que por vezes parecem protagonistas, como o Doutor Amos Cochran (Brad Dourif), o único médico da cidade e um homem nobre, mas que luta contra os fantasmas daqueles que viu morrer em seus braços, A.W. Merrick (Jeffrey Jones), o jornalista que faz de tudo para ética e imparcialmente relatar os eventos da cidade e até mesmo Jewel (Geri Jewell), empregada do The Gem com sérios problemas físicos de locomoção (creio que com paralisia cerebral) que é alvo de todo o tipo de chacota e preconceito horrível, mas que, mesmo assim, anda de cabeça erguida. Seria injusto, porém, eu deixar de destacar E.B. Farnum, o seboso (física e moralmente) dono do principal hotel do local que é uma espécie de “mão para toda a obra” de Swearangen. Vivido de maneira invejável por William Sanderson, Farnum é a encarnação da desonestidade e do egoísmo, um homem mais pernicioso e perigoso que o próprio Swearangen, mas coberto por um verniz brilhante e nojento de covardia. É, sem dúvida alguma, um daqueles personagens que dá tanta vontade de pular na tela para enforcar, quanto de aplaudir efusivamente.

A riqueza de cada personagem, todos com histórias pregressas e influências na narrativa principal, é de se tirar o chapéu e demonstra que Milch tinha um plano-mestre altamente complexo em sua mente antes de erguer um fac-símile audiovisual de Deadwood. E esse plano exigia diálogos diferenciados, daqueles não vemos facilmente por aí. Fugindo de um inglês típico da época para evitar o completo hermetismo de sua criação e eventual incompreensão, mesmo por nativos na língua, Milch estabeleceu um padrão que usa uma gramática rebuscada, por vezes “shakespeareana“, com construções de frase complexas em monólogos de orações longas que, porém, graças ao trabalho do elenco, parecem perfeitamente naturais, jamais efetivamente confundido o espectador, ainda que a série efetivamente exija um domínio maior do que o normal da língua inglesa para ser apreciada por completo (as legendas oficiais em inglês ajudam, claro, mas a sonoridade é igualmente importante). Toda essa sofisticação é surrealmente casada com a inserção absurda de profanidades anacrônicas, notadamente vindas da boca de Al Swearangen, que substituem o jargão da época com versões modernas e compreensíveis para o público atual, além de emprestar uma incrível “cor” ao tecido narrativo que inevitavelmente funciona como a cereja nesse gostosíssimo bolo narrativo que conta a história verdadeira desse “início de civilização”. Além disso, há um cuidado grande para inserir críticas sociais, muitas deles referentes a toda a sorte de preconceitos – nativos, chineses, deficientes – de maneira a ao mesmo tempo refletir o raciocínio da época e deixar evidente que o mote da série é condená-lo.

David Milch, porém, demonstra sua atenção ao destalhes também na própria reconstrução de Deadwood com base em um cuidadoso e longo trabalho de pesquisa histórica, transformando esse chiqueiro em céu aberto no mais fascinante personagem de todos, algo que raramente se vê por aí. Trocando CGI por madeira, pregos e lama de verdade, o grau de realismo que o showrunner alcançou é, arriscaria dizer, inigualável na televisão ou até mesmo no cinema. Essa é a cidade de faroeste de uma rua só por excelência e o padrão pela qual hoje em dia as demais recriações do gênero devem ser medidas. A fotografia utilizada, que privilegia as tonalidades que naturalmente decorrem do uso pesado de madeira nos cenários, ajuda na composição da ambientação, assim como a iluminação muitas vezes natural, tentando emular as luzes de vela e lampiões da época.

Deadwood é uma aula de como se fazer TV, uma obra que merece ser descoberta e redescoberta por todos os que apreciam criações diferenciadas, complexas, de narrativa elevada e com um elenco dedicado que se entrega em seus mais variados papeis em uma trama de cunho histórico que chega a ser inacreditável por ser tão próxima dos eventos que efetivamente transcorreram no local. Mesmo tendo sido criminosamente cancelada, a série já garantiu seu lugar cativo naquele clube muito especial de obras que estabeleceram um novo patamar em seu gênero, patamar esse que dificilmente será ultrapassado, acrescentaria.

Deadwood – 1ª Temporada (EUA – 21 de março a 13 de junho de 2004)
Showrunner: David Milch
Direção: Walter Hill, Davis Guggenheim, Alan Taylor, Ed Bianchi, Michael Engler, Dan Minahan, Steve Shill
Roteiro: David Milch, Malcolm MacRury, Jody Worth, Elizabeth Sarnoff, John Belluso, Malcolm MacRury, Jody Worth, Elizabeth Sarnoff, George Putnam, Bryan McDonald, Ricky Jay, Ted Mann
Elenco: Timothy Olyphant, Ian McShane, Molly Parker, Jim Beaver, W. Earl Brown, Dayton Callie, Kim Dickens, Brad Dourif, Anna Gunn, John Hawkes, Jeffrey Jones, Paula Malcomson, Leon Rippy, William Sanderson, Robin Weigert, Sean Bridgers, Garret Dillahunt, Titus Welliver, Brent Sexton, Powers Boothe, Keith Carradine, Bree Seanna Wall, Sarah Paulson, Stephen Tobolowsky, Brian Cox, Timothy Omundson, Ray McKinnon, Geri Jewell
Duração: 720 min. (12 episódios)

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais