A tarefa do som no cinema é primordial para a construção de sentidos. Logo na abertura, ressalto a relevância do som nos filmes do cineasta Alfred Hitchcock, um realizador que acompanhou diversas tendências ao longo da evolução da linguagem cinematográfica, tendo trafegado entre os filmes “mudos” e sonoros, coloridos e em preto-e-branco. Psicose não seria tão bom sem a presença do som e da trilha de Bernard Hermann. A cena do dinheiro remexido por Marion Crane, o carro jogado no lago por Norman Bates e as facadas da cena do chuveiro são apenas alguns dos grandes pontos sonoros de um dos melhores filmes do cineasta. As sirenes no desfecho de Festim Diabólico, o som de grilos empregado na saída de operários de uma fábrica em Sabotador são apenas dois exemplos de diversas produções que utilizaram o departamento de som para manipular as emoções do público.
Em Os Pássaros, Hitchcock gerencia a equipe técnica e reforça a sua tradição de cunho expressionista, formada em meio às influências inglesas e estadunidenses. Na trama, os ameaçadores pássaros não emitem apenas os seus sons habituais, ao contrário, parecem felinos. Na cena em que uma das personagens descobre um homem morto pelas aves ameaçadoras, os seus gritos de pavor inicialmente abafados são reforçados pelo som da caminhonete que lhe permite a fuga da cena de horror. Noutros filmes, os momentos de silêncio são entrecortados por sons que fazem o público sair da posição de conforto.
Com som ou em meio ao profundo silêncio, as manifestações sonoras no cinema são elementos importantes para o estabelecimento das estratégias narrativas propostas pela produção que é ofertada ao público para apreciação. Na abertura de Todos Já Sabem, drama do cineasta Asghar Farhadi, uma tesoura é utilizada para cortar pedaços de jornais que noticiam o sequestro de uma garota. É possível perceber a simbologia sonora que altera o som real do instrumento, pois o que se pretende na cena é ressaltar a relevância do que é mostrado para a compreensão dos conflitos que serão estabelecidos adiante. Em outros casos, a importância do contra ponto entre o som e o silêncio empregam ao filme um alto teor simbólico, tal como podemos contemplar no desenvolvimento de Persona, drama de Ingmar Bergman.
A Chegada e seu sofisticado design de som. Na primeira imagem, a supervisora de som edita, na segunda temos os desenhos da criatura alienígena, analisado para a emissão dos sons de acordo com sua forma física; e na terceira imagem, um dos responsáveis capta sons graves de uma ave numa reserva florestal.
Ao longo da história do cinema, a lista de exemplo é extensa. Há casos, no entanto, mais inesquecíveis que outros. As reflexões em torno do design de som em O Exorcista geralmente são unânimes. Eis uma produção bem sucedida no que diz respeito ao som. O filme é um espetacular trabalho em diversos setores, dos enquadramentos ao desempenho do elenco e da montagem. No entanto, um dos maiores trunfos desta obra-prima é a concepção sonora, seara onde “o diabo sussurra nos detalhes”, conforme escreveu um crítico na época do relançamento dos filmes nas salas de cinema no ano 2000, com os 11 minutos de cenas adicionais, censuradas quando veiculado em 1973. As portas que rangem e as múltiplas vozes da menina possuída no ato do exorcismo, bem como o cuidadoso contraponto entre arroubos silenciosos e som estridente compõem a atmosfera aterrorizante de uma obra inesquecível.
Em busca dos efeitos psicológicos já aguçados pela leitura do romance homônimo de William Peter Blatty, o departamento de som intensifica a sensação de medo na cena do Padre Merrin (Max von Sydow) ao descobrir Pazuzu esculpido em pedra no Iraque. O vento que passa pelo local, bem como os barulhos oriundos dos cães inquietos que estão próximos provocam a tensão e o desconforto ideal para imersão no que a narrativa oferta mais adiante. O silêncio na cena do escritório, quando o mesmo padre analisa pedras arqueológicas e o pêndulo do relógio para de funcionar, o público fica diante de outro ponto de uma das sofisticadas camadas sonoras do clássico.
Desta forma, com base no preâmbulo, consegue imaginar a produção citada sem o som como parte do aparato narrativo? Creio que seja um exercício complexo, haja vista a carga semântica da textura sonora no desenvolvimento das articulações dramáticas do enredo. Na ocasião da bem sucedida mostra “Som: A História Que Não Vemos”, o curador Bernardo Adeodato expôs que “o som sempre esteve presente nas nossas vidas, desde o quarto mês de gestação é o primeiro sentido que desenvolvemos”, por isso, “é por meio do som que se dá nosso primeiro contato com o mundo exterior”. Seria diferente com o cinema, arte conhecida por ser mais ampla que a ópera, manifestação artística completa até a chegada da sétima arte?
A história nos mostra que não foi, apesar das apostas contrárias de artistas da época, dentre eles, Charles Chaplin, ator que considerava prejudicial o surgimento do som sincronizado. Não foi apenas nos “primeiros momentos” que o som teve a sua importância relativamente esnobada. Em “As Funções do Som no Cinema Clássico Narrativo”, artigo que integra a coletânea de O Som No Cinema, ao fazer uma análise de um texto de Robert Stam, Fernando Morais da Costa aponta que “há um amplo e meticuloso conjunto de regras para a utilização do som, de forma que o espectador esqueça exatamente a sua construção”, algo inadequado quando somos colocados para refletir sobre a presença do som no cinema, articulação técnica que vai muito além da subordinação e do mero acompanhamento das imagens.
Ao longo das reflexões de A Linguagem Cinematográfica, Marcel Martin resgata alguns excertos de teóricos e cineastas que compreenderam o som como uma possibilidade de articular artifícios narrativos que apenas a imagem não dava conta em sua totalidade. Para Martin, os fenômenos sonoros se dividem em ruídos naturais e ruídos humanos. No primeiro caso, temos todos os sons que concebemos como naturais, tais como os ruídos de vento, o trovão, a chuva, as ondas do mar, a água corrente, o uivos de lobos, o rugido de leões, o canto de pássaros, etc. O que seria de alguns filmes de terror sem a presença dos trovões que atualmente se tornaram clichês, mas que ainda funcionam quando bem empregados? Em Blade Runner – O Caçador de Androides, o som da chuva é um elemento essencial para o desenvolvimento das intenções narrativas.
Em Dexter, os designers trabalhavam por meio de captações e criações já conceituadas na indústria audiovisual. A primeira imagem traz a cena comentada no texto, com os personagens tendo um trem como segundo plano. Nas imagens do departamento de som, a equipe corta aipos, quebra pedaços de madeira, joga capacetes (para som de cabeça decapitada caindo), golpeia um pedaço de carne e esmiúça uma tigela de gelatina (massa encefálica?). Detalhe: a sétima imagem apresenta a tela do computador com o programa a sincronizar as faixas de áudio inicialmente separadas.
No segundo caso, os ruídos humanos, Marcel Martin divide em ruídos mecânicos, isto é, aviões, máquinas, carros, locomotivas, etc. Há também as palavras-ruído, um fundo sonoro humano em que as palavras dão o tom de presença humana na narrativa e a música-ruído, geralmente produzida em filmes musicais ou, como ilustração, um fundo sonoro com a estação de rádio, algo que pode ou não ter algum valor simbólico. Veremos, mais adiante, a função do som de um trem num determinado episódio de Dexter. Além do exemplo, podemos apontar as máquinas e engenhosos obstáculos superados pelos protagonistas do turbinado A Ilha, os carros da comédia Em Ritmo de Fuga, dentre outros.
Para ilustrar o capítulo Os Fenômenos Sonoros, o teórico comenta The Avening Conscience, de D. W. Griffith, filme que recorre ao uso de primeiros planos repetidos de um lápis batido numa mesa e de um pé martelando constantemente o chão, numa alusão ao batimento do coração de uma pessoa perseguida por um assassino. Em Eldorado, o cineasta L’Herbier expõe diversos planos de instrumentos musicais em sequencia, tendo em vista transmitir a desejada palpitação musical interna de um cabaré. Os apitos de um navio rasgam a cena em O Mercado de Ladrões e simbolizam, de maneira eficiente, a angústia de uma prostituta perseguida por dois criminosos. Fritz Lang entregou ao público uma assustadora experiência sonora em M – O Vampiro de Dusseldorf, lançado em 1931, suspense onde um assobio macabro conecta os espectadores ao assassino frio antes mesmo da primeira aparição de seu rosto. São ilustrações que funcionam como dados históricos, explanados panoramicamente adiante.
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1 – Breve Panorama Histórico do Som no Cinema
O som no cinema é uma das partes que compõe a evolução de uma arte que inicialmente não tinha o áudio sincronizado. Conforme reflete Adeodato, “o som sempre acompanhou a história do cinema”, pois desde os primórdios, o “cinema sempre quis falar”, não é a toa que os cineastas Fritz Lang e D. W. Griffith encomendavam partituras exclusivas para acompanhar os seus filmes. Das tentativas iniciais do quinetoscópio de Thomas Edison, ao cinematógrafo dos irmãos Lumiere, passeando cronofone do francês Leon Gaumont, várias foram as etapas de evolução do cinema tal como o conhecemos na contemporaneidade.
A produção de sons orgânicos em The Walking Dead. A melancia para simbolizar as vísceras remexidas, a camurça molhada para caminhada em espaços esponjosos e o aipo partido para representar os ossos fraturados.
Na década de 1920, a Warner sai à frente na corrida evolutiva da linguagem cinematográfica com o vitaphone na exibição de Don Juan, seguida do sucesso de O Cantor de Jazz, de 1927, famosa produção com Al Johnson. Diversos livros que se propõem a traçar o panorama histórico da linguagem cinematográfica apontam a produção em questão como o primeiro filme “realmente” sonoro, quando na verdade a apresentação completa do som em um filme ocorreu em Luzes de Nova Iorque, lançado pelo grupo Paramount. O Cantor de Jazz tinha apenas os números musicais sincronizados.
Nesta mesma época a Fox lançou o movietone e a RCA, subsidiária da RKO também investiu num aparato tecnológico similar. Duas produções da Disney podem se gabar no que tange ao espaço ocupado entre as realizações inovadoras no campo sonoro. O mundo fantástico de Steamboat Willie (repleto de ruídos fundamentais para o avanço da história) e a sincronização em estado avançado de Fantasia (um dos pioneiros da tecnologia de reprodução multicanal, isto é, surround) são referências de valor no panorama da memória do som no cinema. Pouco mais adiante, no Brasil, Adhemar de Barros e a criação do estúdio Cinédia proporcionam aos realizadores locais as primeiras experiências sonoras. Ganga Bruta, de Humberto Mauro, investiu bastante em novas sonoridades bem ao estilo brasileiro de “fazer cinema”.
A década de 1960 começou bem, haja vista o excelente trabalho de gerenciamento que Hitchcock realizou em Psicose. Anteriormente, o cineasta já havia contado com ótimos profissionais em seu departamento de som. Ainda no que tange aos meandros da tensão por meio de elementos sonoros, experiências como 2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, e Era Uma Vez no Oeste, de Sergio Leone. Nos anos 1970, o lançamento de Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola, revoluciona o campo sonoro no cinema. É a partir deste momento que a indústria estabelece o campo do design de som, espaço do profissional responsável pela concepção sonora de um produto audiovisual do começo ao final do processo.
Os cineastas David Lynch e Andre Tarkovsky são dois nomes igualmente importantes do período. Steven Spielberg e George Lucas, na seara do blockbuster, também ganham projeção com seus respectivos trabalhos de gerenciamento de produções bem reconhecidas na área sonora. Na contemporaneidade, o som evoluiu de acordo com os aparatos tecnológicos cada vez mais sensíveis e de amplo refinamento. A lista de boas referências é extensa, mas podemos destacar de maneira muito breve, os trabalhos de design sonoro em O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, e Gravidade, de Alfonso Cuáron.
Os engenheiros de som de Um Lugar Silencioso dialogam sobre o processo de produção. Nas demais imagens, algumas das diversas cenas onde o silêncio é essencial para a sobrevivência.
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2 – O som entre a “edição” e a “mixagem”
Apesar de ser o departamento de som, há, dentre tantas divisões, a equipe de edição de som e mixagem de som, cada um com suas respectivas funções, complementares e em simbiose na apresentação da narrativa ao público. A edição de som compreende a equipe envolvida na captação do som em estúdio, isto é, munidos de microfones, mesas para mixagem, boom, cabos, lapelas, etc. Responsáveis por manter cada equipamento no “lugar e hora certa”, tendo em vista, a devida captação de sons, os editores de som, gerenciados pelo cineasta que assina a produção, dão conta da captação dos diálogos, dos ruídos de fundo e demais sons da mesma linha. Dentre os exemplos de excelente edição de som, podemos apontar Indiana Jones e a Última Cruzada, Jurassic Park, De Volta Para o Futuro, O Exterminador do Futuro 2, Drácula de Bram Stocker, Velocidade Máxima, Clube da Luta, Minority Report – A Nova Lei, Avatar, Estrada Para Perdição, Drive, A Invenção de Hugo Cabret, Argo, La La Land – Cantando Estações, dentre uma imensa e formidável lista de excelentes trabalhos sonoros.
A mixagem de som é um setor dentro do departamento sonoro que reúne a equipe para ajustes na etapa de pós-produção. Com as cenas previamente prontas, os técnicos adicionam sons, potencializam o que é apresentado diante da tela e equilibram a inserção da trilha sonora, juntamente aos demais fenômenos sonoros. Em Ritmo de Fuga, indicado ao Oscar nas categorias de som, em 2018, mixou os estampidos de balas de revolveres com a trilha sonora, num trabalho elogiado quando lançado. Na lista de filmes com boa mixagem de som, podemos apontar Mulher-Maravilha, A Forma da Água, Pantera Negra, Janela Indiscreta, Doutor Jivago, Funny Girl, Chinatown, A Conversação, O Exorcista, Platoon, Tootsie, Evita, Duro de Matar, Forrest Gump – O Contador de Histórias, Gladiador, Chicago, Gangues de Nova Iorque, Bastardos Inglórios, As Aventuras de Pi, dentre outros de uma lista tão extensa quanto a edição de som.
Filmes com trabalho de som mais apurado: Um Tiro na Noite, Vermelho Como o Céu e A Conversação.
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3 – O som como narrativa: ilustrações com alguns filmes e séries
A lista de excelentes trabalhos em design de som é extensa, afinal, a produção na era da reprodutibilidade técnica é veloz, mas alguns casos serão apontados como ilustração do processo analítico em questão. A seleção não possui nenhum caráter hierárquico em relação aos demais filmes e séries com ótimos trabalhos no campo do som. É apenas uma abordagem livre. Na segunda temporada da série Revenge, o showrunner Mike Kelley e o produtor musical Izler selecionaram uma trilha com sons que remetiam ao mar como música incidental para as cenas do programa da ABC inspirado livremente em O Conde de Monte Cristo. Na tentativa alcançar os sons desejados para o episódio da morte de um importante personagem, Izler foi ao ferro-velho mais próximo e comprou uma série de peças para criação de sons originais, processados posteriormente na mesa de edição, sem precisar recorrer aos pacotes de efeitos sonoros já prontos em programas específicos.
Ainda na seara televisiva, podemos observar um bom trabalho na concepção dos sons em The Walking Dead. Conforme os depoimentos de Gale Anne Hurd e Robert Kirkman, a imagem é apenas metade da experiência na produção da série, pois tudo que é mostrado passa por um processo de reduplicação. A bandeja colocada numa mesa, o gatilho de um revólver, uma porta rangendo, etc. Greg Barbanell e Shelley Roden, responsáveis pela supervisão de som, apontam que na trajetória dos humanos e zumbis, a realidade é propositadamente aumentada, tendo em vista alcançar os efeitos dramáticos desejados.
Jurassic Park foi um dos trabalhos mais revolucionários no que tange ao Design de Som Nas laterais, cenas de grande impacto sonoro. Ao meio, a equipe de som trabalha nos ajustes para a mixagem.
Alguns recursos orgânicos são adotados constantemente nos bastidores, dentre eles, a melancia amassada para captar o som que nos remete às vísceras, alimento predileto dos zumbis, bem como um pedaço de camurça molhada apertada, tendo em vista, alcançar a textura ideal para barulhos esponjosos. Há também o aipo partido para representação dos ossos fraturados. Segundo WK Stratton, coordenador de vocais em The Walking Dead, o som emitido pelos monstros da série é todo criado em estúdio, com atores a dubla-los por meio de performances com base no que é exposto numa tela, num trabalho de bastidores que poucos conhecem, mas que é preciso dar o devido reconhecimento.
Os sons e seus significados estão em outra série sangrenta. Num determinado episódio de Dexter, o supervisor de som Fred Judkins explica como reajustou uma cena com diálogos prejudicados pela passagem de um trem no plano de fundo, algo que atrapalhava a compreensão do que era dito pelos personagens. Nessa passagem, os realizadores do setor regravaram o áudio do diálogo para a dublagem e na passagem do trem mesclaram sons originais do mesmo, juntamente com o rugir de um leão e outros efeitos que empregassem medo e tensão na cena. Noutra passagem, o molho de chocolate, comumente utilizado pela indústria desde Psicose, foi utilizado para captação dos respingos de sangue. Para esta mesma cena, Judkins golpeou um pedaço de carne, fez atrito numa tigela repleta de gelatina e quebrou um pedaço de madeira com um tecido para representar o som de uma decapitação, sendo o tecido para representar a pele e a madeira para a suposta textura sonora do osso partido.
Um trabalho para o cinema bastante elogiado é o design de som em A Chegada, drama com protagonismo de Amy Adams. Com trabalho desenvolvido pelos engenheiros de som Sylvain Bellemare, Dave Whitehead e Michelle Child, o filme, tal como afirmam os profissionais, pensa no som como um personagem, uma linguagem “invisível” que possui grande importância na construção da narrativa. Interessados num trabalho sonoro mais original, a equipe utilizou a captação dos sons de ventos, processados num programa de computador, tendo em vista demarcar a textura da movimentação da “concha” dos visitantes alienígenas. Para o momento em questão também foram utilizados os sons de pedras em movimento.
No que concerne ao som dos “estrangeiros”, Whitehead e Child estudaram a forma física para assim, criar sons que fossem realistas, isto é, de acordo com a estrutura física interna e externa desses seres não humanos. O som grave de uma ave, o gorgolejar de camelos e um pulmão encharcado de água, criado por meio de papel de arroz, foram alguns mecanismos utilizados para a captação do que os envolvidos buscavam para a emissão de sons das criaturas extraterrestres. Há uma cena de “encontro” da protagonista que envolve o som da criatura e uma ave, mescla diegética entre o que seria um “som real” e “som irreal”.
Com abordagem minimalista, o silêncio em A Chegada é o elemento sonoro mais importante, tal como Um Lugar Silencioso, de John Krasinski, filme de terror que teve Tubarão, de Steven Spielberg, como uma de suas fontes sonoras inspiradoras. Um Lugar Silencioso flerta com o silêncio e o ruído de maneira surpreendente. Ethan Vander Ryn, Erik Aadahl e Brandon Jones, engenheiros de som, afirmam que numa produção onde diversos sons são eliminados, o material que resta torna-se ainda mais poderoso. No filme, uma família sobrevive ao cenário desolador de um mundo invadido e habitado por seres alienígenas que não enxergam, mas podem ser fatais graças ao amplo sensor de audição. Logo na abertura eles perdem uma das crianças, acontecimento que torna a existência dolorosa.
Ao longo do filme, a família brinca de banco imobiliário sem emitir um som sequer, a mesa de jantar é devidamente organizada para evitar ruídos e num momento de alta tensão entre o meio e o desfecho, a protagonista precisa lidar com o silêncio diante do parto de seu novo filho. Millicent Simmonds, atriz surda, emprega ao filme alguns dos melhores momentos no que tange ao uso do contraponto entre sonoridade e silêncio. Numa determinada cena, a montagem entrecorta a garota e o pai num momento de muita tensão. Enquanto os trechos dele estão acompanhados de ruídos e trilha, as cenas em que ela aparece sozinha são silenciosas, o que permite ao espectador mergulhar nas estratégias narrativas da produção e aumentar o teor da profundidade psicológica dos personagens e da trama.
Um dos detalhes que a equipe ressalta é a produção de sons emitidos pelas criaturas. O tubarão de Spielberg não emitia sons, mas era acompanhado da trilha exuberante de John Williams. Para os monstros da produção, os engenheiros de som economizaram em excessos e ficaram apenas com pequenas manifestações de locomoção, pois de acordo com os realizadores, o som produzido originalmente parecia com unhas arranhando uma lousa, algo que adentrava a seara do excesso e fugia da proposta sofisticada da produção.
Aos interessados, creio que seja importante assistir aos seguintes filmes: Um Tiro na Noite, de Brian De Palma; Vermelho Como o Céu, de Cristiano Bortone; Nashville, de Robert Altman; Berberian Sound Studio, de Peter Strickland; A Conversação, de Francis Ford Coppola, cineasta que também pode ser indicado para conferência em Apocalipse Now. São filmes importantes na seara do design sonoro, alguns bem focados na metalinguagem, isto é, na reflexão sobre o próprio processo de criação de som para narrativas.