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Crítica | A Ilha das Almas Selvagens

por Rafael Lima
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Durante a década de 1930, o gênero terror passou por um boom criativo em Hollywood, encabeçado pela Universal Studios e seu ciclo de filmes de monstros. O arquétipo do cientista louco também se tornou muito popular durante o período, o que tornou a obra do escritor H.G Wells, especialista em histórias de ficção científica que flertavam com o terror, uma fonte fértil para adaptações do gênero. Em 1932, enquanto a Universal trabalhava em sua adaptação de O Homem Invisível, que seria lançada por James Whale no ano seguinte, a Paramount Pictures apresentou a sua versão de outro clássico de Wells, a versão cinematográfica do romance A Ilha do Doutor Moreau, rebatizado com o título de A Ilha das Almas Selvagens (no original, The Island of The Lost Souls).

A trama acompanha Edward Parker (Richard Arlen), um náufrago que é resgatado por um navio que está levando animais selvagens para uma pequena ilha não mapeada, sob a responsabilidade do Sr. Montgomery (Arthur Hohl). Parker está tentando chegar até a capital Apia, onde irá se casar com a sua noiva Ruth (Leila Hyams), mas ao se desentender com o capitão do navio, ele é abandonado na pequena ilha onde Montgomery desembarcou com seus animais. Lá, Parker conhece o proprietário da ilha, o excêntrico Doutor Moreau (Charles Laughton), um cientista britânico exilado, que vive sozinho com Montgomery e nativos de aparência estranha. Mas logo, o náufrago descobre a verdade dos bizarros experimentos evolutivos que Moreau vem realizando em sua ilha, que consiste em tentar transformar animais em seres humanos.

A Ilha das Almas Selvagens é um representante típico dos filmes de terror hollywoodianos pré-Código Hayes, ao apresentar doses de erotismo e violência que seriam difíceis de imaginar no cinema poucos anos depois, mas que surgem no longa metragem de Erle C. Kenton de forma elegante, principalmente através de imagens sugestivas. Mas estes elementos não são postos de forma gratuita, estando a serviço dos dilemas apresentados pelo roteiro escrito a quatro mãos por Waldemar Young e Philip Wylie, que propõe a discussão sobre o que significa realmente humanidade.

Desde a chegada do protagonista na ilha, percebemos que existe algo de errado com os nativos, que apresentam mais pelos do que o normal, ou possuem características animais em seus rostos. Mesmo a belíssima Lota (Kathleen Burke), a única mulher da ilha, possui um comportamento estranho, ainda que não possua fatores destoantes em sua aparência. Não demora muito para que Parker descubra a horrível verdade ao ouvir gritos vindos do lado de fora da propriedade do cientista, originados de uma construção que Lota chama de A Casa da Dor, onde o náufrago descobre Moreau e Montgomery praticando vivissecção em uma criatura humanoide, percebendo que todos os nativos da ilha são animais, e que mesmo Lota era originalmente uma pantera.

O filme de Kenton mostrou-se bastante incômodo para a sua época pelo caráter deturpado do universo apresentado pela narrativa, já que não só Moreau transformou esses animais em humanos através de experimentos brutais, como planeja que eles se envolvam sexualmente com pessoas. O vilão primeiro manipula Lota para que ela seduza Parker, e posteriormente orquestra a tentativa de estupro de Ruth por um homem-macaco quando ela visita a ilha em busca do noivo, com a câmera de Kenton sempre mostrando Moreau observando esses acontecimentos das sombras, como um voyeur. Além disso, o personagem de Laughton leva o lema de “sentir-se um deus” entoada por outros cientistas loucos da ficção para outro nível ao ser realmente adorado como uma divindade em sua ilha por suas criações, que recitam as leis do cientista como um verdadeiro culto, representado pelo Orador da Lei (Bela Lugosi). A trágica ironia apresentada pelo filme é que justamente uma figura tão desumana quanto Moreau, que não tem empatia alguma pelo sofrimento de suas criaturas, está tentando ensinar humanidade a elas, esquecendo-se que a humanidade tem dois lados, que é o que acaba conduzindo-o à sua destruição no clímax da obra.

Apesar de bem escrito, o personagem poderia facilmente ter sido interpretado de forma histriônica, mas Charles Laughton prefere viver Moreau de forma sutil, como um homem que esconde a sua insanidade atrás de modos refinados e uma postura cínica, ainda que possamos ver a sua persona bestial em momentos como aqueles onde ameaça Lota, ou na já citada cena em que é surpreendido por Parker enquanto realiza uma vivisseção. Deve-se destacar ainda o curioso figurino escolhido pelo vilão, que remete aos trajes utilizados por colonizadores europeus, em uma opção muito apropriada para um personagem que quer impor sua visão de “evolução” a um outro povo (neste caso, espécie). Merece destaque também a pequena, porém importante participação de Lugosi como o Orador da Lei, que mesmo sob uma pesada maquiagem usada para criar uma besta humanoide, transmite a devoção que tem às leis de Moreau e á fúria ao ver sua fé como instrumento de manipulação; e o trabalho de Kathleen Burke como Lota, cujos traços exóticos a tornaram perfeita para viver a Mulher Pantera.

A direção de Erle C. Kenton merece ser exaltada principalmente por conseguir transmitir a intenção e a natureza de seus personagens com elegância. Um exemplo é a cena em que em plano geral, vemos Moreau no topo de uma pequena colina, lembrando às suas criações somente com o poder de sua presença e o estalar de um chicote quais são as leis da ilha, reforçando o caráter divino que o cientista tem para aquelas criaturas, ou a forma como o cineasta enquadra e acompanha os pés de Lota aproximando de Parker na cena em que ela tenta seduzi-lo à beira de um lago, destacando não só as intenções sedutoras da personagem, mas também sua origem felina.

A Ilha das Almas Selvagens é um filme que envelheceu muito bem ao longo de seus mais de oitenta anos. Trata-se de uma obra que explora os lados positivos e negativos dos conceitos de humanidade e bestialidade, através das ações de um cientista mais desumano que qualquer uma de suas criaturas, vivido de forma diabolicamente discreta por Charles Laughton. H.G Wells, autor do romance que deu origem à obra infelizmente não gostou do resultado final, dizendo que o filme era horrível e raso. Com todo o respeito ao mestre da ficção científica, eu não poderia discordar mais.

A Ilha das Almas Selvagens (The Island of The Lost Souls), Estados Unidos, 1932.
Direção: Erle C. Kenton.
Roteiro: Waldemar Young e Philip Wylie (Baseado em Romance de H.G Wells).
Elenco: Charles Laughton, Richard Arlen, Leila Hyams, Bela Lugosi, Kathleen Burke, Arthur Hohl, Stanley Fields, Paul Hurst, Hans Steinke, Tetsu Komai, George Irving.
Duração: 70 Minutos.

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