Mundo. Vinte e seis de novembro de dois mil e dezoito. Notícia: morre em Roma, aos 77 anos, o cineasta Bernardo Bertolucci. Setenta e sete segundos dois, as enterrrnetes entram em polvorosa e de novo (novamente e mais uma vez) a polêmica do GENTE CONDENÁVEL PODE CRIAR BOA ARTE? vem à tona. Em cena, as reações mais diversas diante da morte do (por alguns intitulado) “estuprador e péssimo diretor“. O caso é conhecido. Trata-se do infame abuso do cineasta e do ator Marlon Brando contra a atriz Maria Schneider no filme O Último Tango em Paris (1972).
E a discussão ingrata diante da pergunta “você é capaz de apreciar a arte de uma pessoa ruim?” aparece logo em seguida. Porque (e isso vocês podem comprovar com uma pesquisa em redes sociais) há um número considerável de pessoas que realmente estão classificando Bertolucci como “péssimo diretor“, “idiota cuja obra irrelevante deve ser jogada no esquecimento“, “artista menor que só conseguiu fama abusando dos outros“. Diante disso, achei um bom momento para complementar uma conversa já iniciada por aqui, no Plano Polêmico Woody Allen: Justiça ou Caça Às Bruxas?. Como sempre, não é nada fácil caminhar por essa estrada. Mas serei breve.
A esse respeito, penso que… sim. É possível alguém apreciar a arte de um indivíduo infame. E sim, este é um assunto delicado. E novamente sim, dependendo da relação de uma determinada pessoa com a infâmia cometida pelo tal artista, será emocional, psicológica ou humanamente mais difícil — ou até mesmo impossível — apreciar a tal arte. Contexto é tudo, certo? Mas aí surge algo que todos nós precisamos entender. A condenação das atitudes pessoais de um artista são um julgamento moral, ético, social ou histórico que deve ser identificado, punido, problematizado, discutido. Passar pano para podridões alheias não é a palavra de ordem aqui. Agora, em quê esses valores de condenação pessoal se aplicam a um julgamento puramente estético de uma carreira inteira?
E eu nem estou falando de casos muito diretos (como do próprio Último Tango em Paris) onde a manufatura da obra em si está ligada a um ato terrível. Essa é uma discussão mais delicada que deve ser feita com exclusividade para a obra em tais condições, e que podem ter distintos pesos e implicações para diferentes pessoas — vejam o que eu disse no início do parágrafo anterior a esse respeito. Todavia, à parte os casos que exigem discussões contextualizadas, o que dizer de uma filmografia, discografia, bibliografia, etc, feitas por um artista que cometeu atos condenáveis? A arte se torna automaticamente péssima e deve ser colocada no esquecimento (assim como o artista) pelo ato condenável que ele cometeu?
Ou será que é possível apreciar a arte de alguém e ainda assim condenar e gritar contra o que ele ou ela tenha cometido de ruim? Para mim, isso é possível sim. E para vocês?
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Ah, e só como um mini-exercício de coerência… se a ideia é mesmo classificar como péssimo tudo o que veio de artistas com comportamentos infames e que automaticamente esse artista e toda a sua obra devem ser colocados no mais completo esquecimento, então que comecem a destruição de…
…Grandes Esperanças, David Copperfield e Oliver Twist, do abusivo marido Charles Dickens; das obras dos antissemitas Richard Wagner, T. S. Eliot, Ezra Pound e Virginia Woolf; do assassino Caravaggio; dos racistas H. P. Lovecraft, Dr. Seuss, Patricia Highsmith e Monteiro Lobato; dos pedófilos Egon Schiele, Lewis Carroll e J. D. Salinger; do abusivo com inúmeras mulheres Johnny Cash; do assaltante e violento Chuck Berry; do violento e ligado a gângsters Frank Sinatra; do cafetão, traficante por um tempo e conhecido agressor de mulheres Miles Davis; isso sem contar as polêmicas ligadas a obras ou casos específicos, como no caso de Hergé, o criador de Tintim; de Nelson Rodrigues; de Andy Warhol; de Michael Jackson; de Charles Chaplin; de parte da indústria de quadrinhos e mangás; da música pop; do teatro contemporâneo; da dança… uh, a lista de coisas para se chamar de péssimas, para se esquecer para sempre ou destruir pode ser “um pouquinho” longa, não?