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Crítica | Doctor Who: Trapos, de Mick Lewis

por Rafael Lima
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Equipe: 3º Doutor, Jo (+ UNIT, Brigadeiro Lethbridge Stewart, Capitão Yates, Sargento Benton.
Era UNIT: Ano 5.
Espaço: Inglaterra, Princetown, Bristol, Cirbury.
Tempo: Anos 1970.

Trapos é um romance disposto a testar os limites do que se espera de uma história de Doctor Who. É uma obra de terror, cuja violência surge não só de forma extremamente gráfica, mas muitas vezes incômoda, se propondo a explorar os demônios internos de seus personagens e alguns dos aspectos mais sombrios da contracultura dos anos 1970. Mick Lewis entrega uma trama que se utiliza tanto do horror cósmico Lovecraftiano, quanto de um terror mais cru e humano, muito abordado na cultura pop dos anos 1970, e influenciado pelos crimes de Charles Manson no fim da década de 1960. Situado entre The Curse of Peladon e The Sea Devils, Trapos traz o 3º Doutor e Jo investigando uma misteriosa banda de Punk Rock, que está cruzando o interior da Inglaterra, promovendo shows que provocam surtos de ódio e violência insanas, deixando um rastro de corpos por onde passam — mas também reunindo um grupo cada vez maior de seguidores que acompanham a turnê. A UNIT se vê diante de uma potencial guerra de classes que ameaça destruir o país, enquanto a influência maligna da entidade por trás da banda, um ser quase tão velho quanto o Universo, chamado de Ragman, cresce exponencialmente.

A Era do 3º Doutor foi, em sua maior parte, um período muito solar da série, mesmo que suas histórias fossem influenciadas pelo cenário político e social do Reino Unido da época. Lewis não está interessado em reproduzir a aura de inocência familiar que cercou esta era, e sim em tencioná-la. O autor fez do movimento de contracultura a peça fundamental da trama, através da banda fantasma que reflete a violência de apresentações mais desconcertantes de músicos como Iggy Pop ou G.G Allin. Estas manifestações encontram eco na história através da juventude, simbolizada por um grupo de amigos onde Jo se infiltra para acompanhar o grupo. O autor insere o movimento Punk Rock dentro de um contexto de ódio de classes, explorado nos dois espectros.

A violência é outro ponto que chama a atenção. Este não foi o primeiro livro da série a se utilizar de uma violência muito mais acentuada do que a vista na série de TV, e nem foi o último, mas eu ainda não havia lido nada com essa intensidade no universo expandido de Doctor Who. Não é apenas a riqueza de detalhes com que o autor descreve cenas de assassinato brutais, com personagens tendo picaretas enterradas no crânio, sendo pisoteados, ou fuzilados, mas também por toda esta violência ser o reflexo imediato do ódio dos personagens.

Todos os personagens originais do livro são danificados de alguma forma, apresentando sempre uma nota de ódio ou desespero, mas não ganham outras camadas para conquistar a simpatia do leitor. Os personagens da TV são representados de forma igualmente sombria. Jo é mostrada na maior parte do livro cheia de ódio, ressentida pelo modo condescendente com que muitas vezes foi tratada pelo Doutor, e pelos “modos imperialistas” da UNIT, algo chocante para quem conhece a companion, mesmo que saibamos que ela está tendo a mente influenciada. Jo é descrita fumando maconha e compartilhando um beijo lésbico, mas isso não surge como uma catarse positiva e sim uma expressão da ira e hedonismo selvagem em que a jovem está mergulhada. A influência do Ragman também traz os piores aspectos da formação militar do Brigadeiro, trazendo à tona os impulsos mais violentos do líder da UNIT.

O Doutor é um dos poucos personagens que não é ser afetado pela influência de ódio do Ragman, mas ainda assim, ganha uma abordagem bastante atípica. Após passar parte da trama à margem do conflito principal, o Time Lord acaba preso em um limbo dimensional onde enfrenta uma série de visões que testam o limite de sua sanidade. O 3º Doutor foi uma das encarnações mais confiantes do personagem, mas aqui vemos suas fragilidades e medos serem explorados de forma sádica pelo vilão da trama. Mike Yates também ganha destaque ao resistir à influência corruptora que atinge quase todos no livro, ficando no meio do confronto entre as classes instigadas pelo Ragman. O momento em que o Capitão é brutalmente espancado pelos seguidores da banda, após ser verbalmente humilhado por Jo, é um dos mais intensos e bem escritos do livro.

Lewis foi corajoso ao submeter uma história violenta — e muitas vezes repulsiva — a um dos períodos mais singelos da série, mas quanto mais ousada a história, mais cuidado ela demanda e, infelizmente, falta cuidado em Trapos. A partir de certo ponto, a trama começa a andar em círculos sem que haja um crescendo da tensão. Acompanhamos a banda chegar a um lugar, um show acontece, provocando uma carnificina, e a turnê segue para outra cidade, onde o processo se repete. O autor ainda cria situações bizarras que chegam a envolver a família real britânica, mas tais situações têm apenas valor de choque, sem maiores repercussões, algo questionável pela escala de algumas situações, o que denuncia falta de noção de escala narrativa. O desfecho também apresenta problemas, não só por trazer um mal colocado Deus Ex Machina na resolução do conflito, mas também uma conclusão abrupta, não dando aos personagens tempo de refletir sobre os terríveis eventos, algo que se fazia necessário, especialmente pelos arcos dramáticos do Doutor, Jo, e Mike Yates.

Trapos não é uma leitura agradável. A prosa é muitas vezes pesada e seu pessimismo niilista pode ser bastante incômodo, especialmente tendo em vista o período da série retratado. Mas apesar de não ser um livro leve, a obra de Mick Lewis possuía potencial de ser um dos romances mais intensos e diferentes de Doctor Who por sua abordagem subversiva e radical, já que a violência, a linguagem pesada e mesmo a conotação sexual de alguns trechos do livro eram coisas necessárias para a trama que o autor queria contar. Infelizmente, apesar da extrema habilidade em evocar imagens horríveis e de grande impacto ou em criar momentos chocantes, a trama tem problemas sérios de estrutura e a desconstrução de personagens tão importantes para a série como Jo, o Brigadeiro e o próprio Doutor não é tratada com o devido cuidado. E é muito difícil gostar de qualquer um dos personagens originais. Trapos poderia ter sido um mergulho intenso de Doctor Who no lado feio da contracultura dos anos 1970 e no abismo de classes, mas o resultado final é apenas um livro mal estruturado e desagradável, que não fica à altura de suas ambições.

Doctor Who: Trapos (Rags) Reino Unido, 05 de Marco de 2001.
Autor: Mick Lewis.
Publicação: BBC Past Doctor Adventures # 40.
227 Páginas.

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