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Crítica | O Processo (2018)

por Gabriel Carvalho
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“Tem que mudar o governo para estancar essa sangria”

As narrativas costumam construir culpados, os grandes vilões, responsáveis pelas grandes problemáticas sociais, políticas, econômicas, esportivas e pessoais. Quando um goleiro sofre uma falha grotescamente ao final de uma partida de futebol, resultando em um resultado morno, mas negativo, de 1 a 0, a culpa pela derrota é direcionada com exclusividade a ele, mesmo que o time pudesse muito bem ter dado origem, nos noventa minutos de jogo anteriores, a êxitos, os chamados gols – um, dois, três, quatro -, deturpando-se, consequentemente, a visão da falha do goleiro como uma tragédia. Temos, então, um vilão. Desde 2013, durante as eleições presidenciáveis daquele ano, o Brasil passa por uma crise extrema de descrença, por parte da população civil, nos seus políticos, muitos acusados, delatados, indiciados e até mesmo condenados. O chefe do Poder Executivo, invariavelmente, toma as rédeas da descrença. Quando uma grande porcentagem da população ocupa as ruas, clamando por justiça, pedindo a renúncia do presidente, ela está indignada. Como não estar? Do outro lado do muro, porém, os defensores da vítima mor dessa indignação – inocente ou culpada – são antagonistas claros da situação toda, dando margem a uma extensa polarização. Como entender o outro lado quando você não concorda com ele? Quando, por aqui, escreve-se presidente e, por lá, presidenta. O espaço é aberto para, ao menos, escutarmos.

O país encontrava-se, portanto, dividido em relação ao culpado, o primeiro nome de peso a cair, dentro de um suposto desmantelamento de toda essa “quadrilha” de políticos, ocupando cargos importantes e não fazendo jus a eles. A presidente Dilma Rousseff, em 2016, na cena que inicia O Processo, documentário de Maria Augusta Ramos, está diante do começo do processo de seu impeachment. A documentarista, antes de qualquer coisa, assume a posição de um lado do muro, sem buscar uma visão completamente imparcial – muito pelo contrário – do caso, entendendo, dessa forma, o processo como uma articulação política das mais sacanas, ou seja, o chamado golpe. A parcialidade, contudo, não significa uma desonestidade, sendo que Augusta mostra seu posicionamento de maneira clara, objetiva, quer seja passível de argumentação contrária ou não – sempre existirá espaço para desacordo, entretanto. A presidente, sendo assim, é o grande foco da cineasta, mantendo-a presente por todo o longa-metragem, não necessariamente em participações físicas, poucas se comparadas a de outras figuras políticas, mas como alvo intenso de uma desconstrução, de um entendimento, principalmente, da maneira como os seus opositores a enxergam, seja opositores políticos ou a considerável porcentagem da população brasileira que marchou pelas ruas, cantando o hino brasileiro e vestindo a camisa da Confederação Brasileira de Futebol.

O entendimento da cineasta é, no final das contas, que Dilma não fora destituída de seu cargo pelas acusações sofridas, as quais, na realidade, pelo parecer de Maria Augusta, foram utilizadas como mero pretexto para o “golpe”, envolvendo nomes de personagens famosos desse desenrolar todo, como Eduardo Cunha e Michel Temer, no chamado “grande acordo nacional”. A argumentação da cineasta é sólida, não muito em relação ao entendimento do quesito da culpabilidade ou não, visto que, dentro de vários jargões jurídicos, o espectador facilmente se perderia, mas, por outro lado, em relação a montagem e a seleção de momentos expressivos que comportam as mais de duas horas de duração do filme. Quando decide contrapor os defensores dos atacantes, Augusta é inteligente, sabendo, após algum discurso extremamente bem articulado de José Eduardo Cardozo, colocar as peças rivais para demonstrarem alguma fuga da proposta do “debate” em questão, quase como uma necessidade, por parte delas, pelo apressamento das sessões. Ao indicar uma descrença de Lindbergh Farias e Gleisi  Hoffmann, entre outros nomes, na absolvição da presidente, não pelo combate de provas contra provas, argumentos contra argumentos, mas pelo julgamento prévio feito pelos presentes na dita casa, as falas dos citados tornam-se mais poderosas. Os personagens parecem estar realmente crentes na inocência de Dilma Rousseff, dando credibilidade para o que eles apresentam.

O jogo também é dinâmico, com a preparação dos argumentos combinando-se com o uso deles, indo dos bastidores para o ao vivo. A exemplificar uma dessas agilidades, a citação aos diálogos gravados envolvendo Romero Jucá e Sérgio Machado, em uma interrupção necessária no andamento do documentário, mescla-se com a apresentação da novidade por Lindberg, durante sessão, também servindo como ponto as fatos novos, possíveis diminuidores da força do impeachment.  Os bastidores de um lado do muro, porém, continuam sendo os bastidores de um lado do muro, sendo que o outro é visto sob um olhar externo, sem muitos avanços para particularidades, senão os feitos sobre a advogada Janaína Paschoal, presença importantíssima desse quebra-cabeça todo, quase como a grande antagonista da fita, mas não uma vilã. Quando a jurista chora empunhando a Constituição Brasileira, a ótica particular do espectador é permitida se fazer presente, julgando Paschoal com cinismo ou com afeição. A demagogia é presente em diversos discursos de diferentes personalidades. O contraste destes, buscando a eloquência, o chamado pelo povo brasileiro, mas não o enfrentamento direto das acusações, das provas, dos argumentos e contra-argumentos, permitem o espectador direcionar-se para a visão de Augusta, mas não a aceitá-la necessariamente – algo que, novamente, trata-se de uma história completamente diferente.

A realidade é que, assim como Augusta tem um posicionamento, o espectador, muito provavelmente, também já terá o seu. Ao meu ver, contudo, o andamento proposto pela cineasta é propício a uma fomentação de debate, abrindo espaço para novos tipos de discussão, mais arrojadas e menos preto no branco, contribuindo para a desconstrução e reconstrução sobre determinado parecer sobre o processo. Maria Augusta, entretanto, possui equívocos em relação a essa presença antagônica, principalmente em uma cena específica, de Janaína tomando um Toddynho, patética ao extremo para uma documentarista que consegue sustentar sua visão apenas com o discurso final da advogada, quase como um comprovante da argumentação da cineasta, na qual o impeachment não é resultado de um “probleminha de contabilidade”, como fala a jurista, mas de um grande fraude da presidente contra o povo brasileiro, como completa, algo que, no final das contas, não estava sendo julgado efetivamente. O impeachment, pela visão de Augusta, bem trabalhada, deveria ser sobre, exatamente, esse probleminha de contabilidade, questionado em diversas passagens pelos responsáveis de defesa, mas, no resultado final, irrelevante para um processo visto com camadas muito maiores do que as existentes. De três decretos irrelevantes para o pensar nos netos de Rousseff existe uma grande diferença de proporções a serem refletidas por Augusta e pelo público.

Um dos pontos interessantes do trabalho da diretora é que ela, em momento algum, busca absolver integralmente o Partido dos Trabalhadores de equívocos anteriores ao cenário refletido. Em conversa franca, os protagonistas da obra discutem o futuro do país, mas também o seu passado, realçando erros. O processo de impeachment, mesmo que um golpe, ainda sofre com resquícios de falhas de integrantes do partido, e se aquelas pessoas bradando o grito de “sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor” estavam revoltadas com o mandato de Rousseff estavam por alguma razão, seja um ponto criminoso ou um ponto de competência. Augusta, entretanto, em relação a isso, ainda dá margem a uma contraposição, durante discurso da ex-presidente. As grandes sacadas de Ramos são os pequenos momentos gravados, como aquele no qual personagens da obra confundem prédios importantes em Brasília ou quando Hoffmann, após a prisão do seu marido, é recebida pelos seus colegas. Em relação a isso, todavia, a cineasta parece se confundir na ótica da quebra de maniqueísmo, dando espaço para um turbulência no meio do processo, mas que soa como ponto fora da curva, embora, possivelmente, bem intencionado, dando origem à dubiedade de pensamentos, mesmo que efêmera e inconsequente. Do outro lado, Janaína acolhe uma rádio pequena, sendo esta uma interessante jogada da diretora, mais bem resolvida, apesar de à margem do avulso.

O discurso vai sendo moldado, enfim, sem nenhum tipo de intervenção da diretora, que não propõe entrevistas e nem “comentários próprios”, o que a faria martelar incessantemente na cabeça do espectador o seu ponto de vista. A abordagem não é em relação ao impeachment como um processo cirúrgico, mas ao impeachment como um representante de algo maior, o começo do fim da corrupção – apesar da corrupção nem ser algo em pauta nessa situação – por uma das vertentes, e a descrença no sistema político por outro, sabotado por poderosos. Para Augusta, sua ótica para todo o cenário é reafirmada quando, após o término do filme, “revela” que  Temer foi acusado de corrupção, mas, não muito tempo depois, o seu processo seria arquivado. O Processo, no final das contas, é uma obra poderosa, mas bastante difícil. A seriedade em que a cineasta trabalha a temática, com as raras exceções, mostram um domínio da estética documentária, sem recorrer a artimanhas recorrentes para engajar o espectador em sua proposta, mesmo que, ao final da sessão, ela não seja o suficiente para alguns, ou, então, o discurso de Janaína Paschoal, durante o clímax do filme, seja um retrato do pensamento de considerável parte do público, lutando por algo maior, contrário a um governo falho, custe o que custar. As opiniões divergem, mas o debate é sempre uma possibilidade.

O Processo – Brasil, 2018
Direção: Maria Augusta Ramos
Roteiro: Maria Augusta Ramos
Elenco: Dilma Rousseff, Janaína Paschoal, Lindbergh Farias, Gleisi Hoffmann, José Eduardo Cardozo, Eduardo Cunha, Jair Bolsonaro, Jean Wyllys, Lula, Michel Temer
Duração: 137 min.

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