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Fora de Plano #43 | Para Onde Vai a Crítica Cinematográfica?

por Marcelo Sobrinho
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Existe uma afirmação categórica e recorrente sobre o futuro da crítica de cinema: há quem diga que ela ruma para a extinção. Sempre desconfio de quaisquer previsões apocalípticas, bem como da visão idealizada de um passado em que tudo funcionava tão bem, enquanto o aqui e o agora funcionariam tão mal. Mas o pessimismo de alguns importantes críticos e cineastas sobre a situação atual da sétima arte e, consequentemente, da figura do crítico, acende uma importante discussão sobre alguns pontos realmente preocupantes acerca do futuro a longo prazo desse ramo. Estaria o cinema, enquanto arte, sucumbindo realmente à superficialidade tecnológica que o domina, como afirmou há dois anos (2016) Martin Scorsese? A opinião de um determinado crítico de cinema ainda é levada em conta pelo público na hora de escolher um filme? Ou terão os blogs, os vlogs e as redes sociais assumido esse protagonismo?

Eu poderia ser interpelado nesse momento por quem acredita que a crítica cinematográfica apenas mudou de lugar – antes albergada em jornais e revistas e agora diluída por essas novas mídias. Em primeiro lugar, é preciso compreender o que é, de fato, uma crítica. Há uma confusão constante entre crítica e resenha e outra, ainda pior, entre informação e conhecimento. As mídias sociais, por mais que tenham expandido a capacidade de informar pessoas, tem promovido uma desnaturação do termo “crítica”, usado por aventureiros que apenas escrevem sinopses comentadas de filmes, sem qualquer análise estética ou linguística das obras. Não há nenhum problema nisso, é verdade. Mas é bom que essa forma textual – a chamada resenha – não seja confundida com uma crítica de fato. Quanto à segunda confusão que aponto, basta que digitemos o nome de qualquer filme em um site de busca para termos acesso a quase tudo sobre ele – os bastidores, as curiosidades, as premiações obtidas e as mais diversas opiniões em formato de texto e vídeo. Digo quase tudo, pois o bombardeio de informações e números nada tem a ver com uma exploração realmente séria da obra. Chovem “análises” ralas e informais.

Compreender por que o clássico raccord de 2001: Uma Odisséia no Espaço é um dos momentos mais gloriosos da história do cinema parece um desejo distante, pertencente a outra realidade. A lágrima solitária e sobreposta à maquiagem borrada de Cabíria, no clássico de Fellini, também parece perder sua capacidade de dizer algo ao público. Não é coincidência que o cinema, enquanto possibilidade de conhecimento do mundo, esteja tão desacreditado quanto a figura do crítico, que cada vez mais escreve para cada vez menos pessoas. Não se trata aqui de nenhum saudosismo barato: o fato é que nem sempre foi assim. Antes da desnaturação que citei do termo “crítico”, para ser aceito como um, era necessário um repertório de cinema tão vasto e tão sólido que alguns deles acabaram até se tornando cineastas de peso. Godard e Truffaut, por exemplo, iniciaram a carreira escrevendo para a lendária Cahiers du Cinema. Esse último, inclusive, teve sua vida salva por um dos fundadores da mesma revista e um dos críticos de cinema mais importantes de todos os tempos – o também francês André Bazin, a quem Truffaut dedicou Os Incompreendidos.

Se, um dia, o crítico cinematográfico já ocupou um papel de destaque tão notável dentro da engrenagem do cinema, é preciso pensarmos mais a fundo sobre os fatores que geraram a aparente encalacrada atual. O primeiro, típico sintoma dos nossos tempos, é a decadência da palavra escrita. O costume das novas gerações de ler textos enxutos, muitas vezes limitados por certo número de caracteres, as afasta de críticas um pouco mais longas. Mais do que isso, a própria noção de texto longo parece seguir a régua das novas mídias. Duas páginas de word tornam-se um desafio, de tal modo que já são suficientes para que o crítico seja acusado de “escrever demais” (fato ocorrido comigo quando escrevia para outro site). É assustador notar que a tarefa de se concentrar em ler dois ou três parágrafos se tornou tão hercúlea. Nossa imensa dificuldade de reconhecer isso como um problema grave, de natureza puramente intelectiva, não estaria intimamente ligada ao superdiagnóstico de transtornos de atenção e afins? Não estaríamos tentando medicar nossa alarmante atrofia intelectual por não reconhecê-la como tal? Eis uma pergunta séria e que me conduz a um segundo problema.

Acho que a crítica de cinema atual está contribuindo para infantilizar ainda mais o seu público. Salvo exceções (felizmente, o Plano Crítico é uma delas), só cresce o número de sites especializados que recorrem a determinadas facilitações, ainda que usadas em textos de boa qualidade analítica. Muitos já começam a inserir um fotograma do filme a cada parágrafo, nitidamente para auxiliar o leitor na difícil missão de ler uma simples crítica. Esse recurso, que lamentavelmente quebra toda a fluidez do texto, parece concordar que não há como ler cinco ou seis parágrafos sem sofrer algum tipo de desmaio ou isquemia cerebral. Tudo isso não passa de um tiro no pé, pois afasta cada vez mais o público de cinema do texto escrito, que ainda é a principal sede da crítica cinematográfica (o vlogs e os canais de Youtube que produzem crítica recorrem a facilitações ainda maiores). A troca da palavra escrita por um uso excessivo da mensagem gráfica parece se adequar aos tabletssmartphones, geralmente usados apenas para leituras rápidas e apressadas, em que a atenção ao que se lê é o que menos importa.

Paradoxalmente, a mesma internet que cria uma série de problemas para a atividade do crítico de cinema consegue criar também um fenômeno inteiramente novo nesse ramo. A possibilidade de ser um autodidata em linguagem cinematográfica tem feito surgir uma geração de novos críticos, antes cinéfilos, capazes de produzir análises sólidas, precisas e até mais interessantes que as produzidas por grandes portais. A capilarização do conhecimento e da possibilidade de tornar pública uma ideia própria tem contribuído para dar novo fôlego ao segmento. Mais do que isso, o surgimento de um segmento independente de crítica de cinema acaba depurando-o de conchavos com os grandes estúdios, dispostos a desembolsar grandes quantias para garantir uma boa avaliação de seus lançamentos. Toda essa interessante contradição moveu o lendário crítico norte-americano Roger Ebert a declarar o momento atual como a “era de ouro da crítica de cinema”.

Suponho que nem a beira do abismo que muitos pessimistas anunciam, nem o paraíso nunca antes vivido. Vivemos um tempo em que as mudanças de um mundo hiperconectado continuarão repercutindo sobre a crítica cinematográfica. Positiva e negativamente. O saldo final ainda é um cálculo complexo, mas uma possível saída está na postura consciente do crítico atual sobre o seu real papel. Penso que o único realmente capaz de matar a crítica de cinema é o próprio crítico, caso ele se transforme em mero orientador de consumo ou, cometendo o erro oposto, insista em se colocar acima da obra, entregando ao espectador interpretações fechadas e limitantes da mesma. É também um paradoxo notar que grandes críticos, que se dizem deprimidos com o panorama atual, insistam em encher suas análises com pura masturbação intelectual. Caso típico é o dos que resolvem basear sua crítica em uma análise quadro a quadro de todo o filme, mastigando e debulhando tudo para o leitor e minando qualquer possibilidade de uma experiência genuína deste com a obra.

Mas se o crítico de cinema, antes de mais nada, souber reconhecer-se como uma ponte entre o público e o filme, aguçando o olhar do primeiro em vez de restringi-lo, penso que a figura do crítico sobreviverá. Ainda terá algo a dizer, mesmo que relegado, no pior dos cenários, à absoluta clandestinidade.

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