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Crítica | O Leitor, de Bernhard Schlink

por Leonardo Campos
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Pare e reflita: quando nós nascemos, carregamos a culpa das realizações de gerações anteriores? Outra questão: quando amamos cegamente alguém, precisamos carregar o pesado fardo por tudo que esta pessoa fez? Após o preâmbulo reflexivo, deixo claro que ao ter respondido para si tais questionamentos, a leitura da crítica torna-se mais elucidativa. Tendo como pontos nevrálgicos os questionamentos de abertura, o romance O Leitor, escrito e publicado pelo alemão Bernhard Schlink, em 1995, pode ser definido como um mergulho denso nas reflexões acerca da importância da leitura, da escrita e do leitor.

A história, aparentemente simples, é conduzida com leveza e trata de temas profundos no que tange os relacionamentos humanos. Schlink oferta ao leitor a história de Michael Berg, um estudante de classe média que, certo dia, sente-se intrigado pela misteriosa Hanna Schmitz, a cobradora de um bonde que ele toma diariamente ao retornar da escola. Entre um olhar e outro eles se conhecem e uma rotina se estabelece: na casa de Hanna, Michael lê uma obra literária, eles tomam banho juntos e depois relacionam-se sexualmente. Eles estão em 1958, uma época que antecede as revoluções culturais dos anos 1960. Sem interesse nas paqueras juvenis da escola, Michael mergulha profundamente no relacionamento com a enigmática Hanna, personagem que na versão cinematográfica, foi interpretada pela competente Kate Winslet.

O recatado garoto que, para a família, lembra o protagonista metamorfoseado de Kafka, passa a ver a vida de maneira mais lúdica. Com Hanna não é diferente. Analfabeta, a misteriosa mulher que o inicia sexualmente e lhe revela um mundo além do trajeto escola-casa, na verdade, está tendo acesso ao universo literário que sequer imaginou se relacionar em situação tão prazerosa.

O ritual, no entanto, deixa de acontecer quando a moça some sem deixar rastro. A única relação de Michael com Hanna é por vias memorialísticas, até o dia em que presencia a moça sendo julgada por crimes cometidos durante o período nazista. Hanna, responsável por vigiar um grupo de mulheres judias, teria obstruído a passagem de fuga durante um incêndio numa igreja, situação responsável por ceifar a vida de várias pessoas. Chocado, Michael assiste a tudo com distanciamento, numa experiência que o leva a mergulhar nos paradoxos da memória e resgatar o passado, na tentativa de compreender os acontecimentos presentes. Com as lições de filosofia e moral dadas por seu pai em casa, o personagem questiona-se sobre os acontecimentos.

Agora adulto, sete anos após o ritual de iniciação com Hanna, Michael é um estudante de Direito. Tendo como atividade acadêmica assistir ao julgamento, o personagem surpreende-se com a condução do julgamento. Hanna, ao sentir-se envergonhada por assumir sua condição analfabeta, é condenada, preferindo ir presa a ter que confessar que não sabe ler e escrever.

Presa, Hanna vai desenvolver o interesse pela leitura no cárcere. Mais adiante, Michael mantém contato com a mulher que marcou a sua vida, perfazendo todo o percurso literário do passado de ambos. Ele grava fitas com a leitura das obras marcantes lidas intensamente durante os encontros realizados no apartamento de Hanna. E neste processo, ela desenvolve habilidades de leitura e escrita e ressignifica a sua vida, mesmo que ao final do processo, o esforço não garanta um final feliz. Após o cumprimento da sentença, a administração entra em contato com Michael, pedindo que ele tome conta de Hanna, arrume um emprego, etc. Ela, no entanto, não aceita bem a questão. Percebe que o garoto de outrora cresceu, o que a leva ao desfecho trágico, mas que antes disso, lhe permite a redenção, representada através da sua alfabetização.

Sabemos que Hanna se suicida e deixa uma carta para Michael, indicando-lhe onde há uma quantia de dinheiro guardada, bem como o seu destino: a família de alguma vítima do Holocausto, um dos acontecimentos mais tenebrosos da história do século XX. Diante deste enredo, Schlink tece reflexões que gravitam em torno de questões como a moral diante de uma situação injusta, a culpa alemã pelas atrocidades nazistas, a necessidade do resgate memorialístico para entendimento do presente, o direito de defesa, mesmo diante da culpa claramente estabelecida (material em potencial para discussões no campo do Direito e Literatura).

Estruturado em três partes, a narrativa se desenvolve em meio ao processo de amadurecimento de Michael. A sua juventude domina quase todo o romance, mas as reflexões da fase adulta é o que pontua a parte majoritária. Narrador em primeira pessoa, O Leitor reflete o passado da Alemanha e não desenvolve a sua análise num esquema maniqueísta. Hanna tinha um dever cívico a cumprir. Havia outra opção? Ela podia ir de encontro ao esquema ideológico do período? O que ela fez foi errado? Provavelmente sim, mas ao invés de transformá-la num monstro, o romance a humaniza, desvendando algumas características da sua complexa formação psicológica.

Schlink, jurista professor da Universidade de Humboldt, em Berlim, revela ao público uma discussão que permeia diversas áreas do conhecimento humano, numa obra traduzida para mais de trinta idiomas e levada ao cinema pelo talentoso Stephen Daldry, com Ralph Fiennes e Kate Winslet a dupla protagonista. Repleto de analepses cronológicas, o romance narrado em primeira pessoa também trata com delicadeza o tema do analfabetismo.

A obra também se destaca pelas suas relações intertextuais. A primeira obra a ser relida por Michael é a Odisseia, de Homero, uma obra que fala justamente sobre um dos temas do romance: o retorno. As leituras na obra funcionam como uma espécie de movimentação rumo ao passado, na busca incessante e aparentemente interminável tarefa de compreensão da história vivida. As relações com a poesia homérica, neste caso, apresentam-se como detalhes bastante significativos. O processo de leitura/escrita realizado por Michael assemelhasse ao trajeto narrativo de Odisseu, herói cujo retorno não impede que a aventura continue em curso, mesmo que ainda em formato de relato.

O Leitor lembra bastante Ressurreição, de Tolstói. No romance russo, um personagem masculino também reencontra uma mulher do passado num processo de julgamento. Carregados pelo sentimento de culpa pela situação injusta a que são submetidos como espectadores e testemunhas, os protagonistas de ambas as obras buscam, em certa medida, realizar algo que reconduza os desdobramentos das situações em questão.

O Leitor (Der Vorleser) — Alemanha, 1995
Autor: Bernhard Schlink.
Editora no Brasil: Record
Tradução: Pedro Sussekind
Páginas: 143

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