Como voltar a visitar, com algum suspiro de novidade, o já velho “dilema situacional” da DC Comics quando fala que o Superman é o “último filho de Krypton”? E, mais importante, para uma história pré-Flashpoint, que interpretação é possível dar para a questão da paternidade do herói e colocá-lo em uma história sem que pareça um melodrama mexicano com alguém super-poderoso? A resposta para todas essas perguntas veio em O Último Filho, escrito por Geoff Johns e Richard Donner (diretor do excelente e amado Superman – O Filme). Juntos neste arco — que sofreu um atraso em seu desenvolvimento, gerando também Intermezzo, uma história paralela diretamente ligada aos acontecimentos de O Último Filho, sobre a qual falo separadamente mais abaixo — os roteiristas criaram uma situação onde o Homem de Aço encontra uma criança. Aparentemente kryptoniana. Que veio para a terra em uma cápsula. Quase um déjà vu.
Antes mesmo de a história nos capturar pelas boas coisas que tem, a arte de Adam Kubert faz este papel perfeitamente bem. Este, aliás, é o único ponto do arco sobre o qual não existem adendos. A diagramação escolhida é o primeiro grande passo para a exposição do drama, alternando-se em “tiras” que seguem por duas páginas; entre páginas duplas ou páginas inteiras que ora trazem quadros de destaque para o rosto de alguns personagens (o equivalente ao zoom + corte em primeiro plano no cinema, mas sem sair do grande cenário); e momentos de luta e interação de personagens que se organizam visualmente muito bem, sem tirar do leitor a sensação de continuidade até mesmo sob pontos de vista diferentes, primeiro com Superman, depois Lor-Zod (em pouco tempo batizado Christopher Kent) e por fim, uma visão do narrador ou do leitor, tanto para a Zona Fantasma, quanto para a batalha final, com a ajuda do Esquadrão Vingador de Lex Luthor, formado por Bizarro, Parasita e Metallo.
Um outro ponto interessante dos desenhos é como Kubert usa a arte-final a seu favor para criar profundidade de campo, expondo até três grandes planos diferentes de ação só através da manipulação simples do olhar, dando maior atenção para os traços finalizados em primeiro plano, correndo para um segundo com cores mais fortes e para o terceiro apenas com lápis e cores mais difusas, mostrando um excelente trabalho de Dave Stewart na escolha da paleta, na variação atmosférica para cada grande momento (Zona Fantasma, laboratório de Lex, prédio do Planeta Diário, fazenda dos Kent e Metropolis atacada) e na criação de uma atmosfera central, com a predominância de alguns tons térreos e quentes, que abraça toda a história.
Ao jogar com o valor de paternidade do Clark Kent e a maternidade Lois Lane, o roteiro de Johns e Donner traz um elemento doloroso, visto pelos dois lados da moeda. A ideia de “último filho”, com a chegada do biológico do General Zod com Ursa, nascido na Zona Fantasma, implementa a questão da adoção, do aumento da família, de amor, de valores e até mesmo de espécie, visto que Christopher Kent tem ascendência kryptoniana. E o roteiro não se furta em problematizar a presença do garoto na Terra como um “alien que precisa ser estudado“; tendo, por outro lado, a visão imediatamente amorosa de Kal-El, que deseja protegê-lo, criá-lo. Momentos como o Superman voado para o prédio do governo com um ursinho de presente; ou como a cena do resgate, ao atacar o comboio do Exército; e como a dura conversa que tem com os Kent, expondo a dificuldade as implicações pessoais da adoção, são pérolas de sentimento que dão à saga intensa carga familiar, considerando diversas origens ou relacionamentos de família.
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Intermezzo
Action Comics #847
Após os eventos de Action Comics #846, com o Superman sendo mandado para a Zona Fantasma, o arco O Último Filho precisou ser interrompido por uma questão de tempo para escrita e desenho da história. Geoff Johns e Richard Donner precisavam de mais tempo para o roteiro, o que fez com que as edições #847 a 850 da revista trouxesse outras histórias, preenchendo o espaço até que o presente arco pudesse ser continuado. Dessas histórias, Intermezzo é a que faz uma ligação direta com o “desaparecimento” do Superman. E ela começa na fazenda dos Kent, em Smallville, onde Jonathan, após uma conversa desesperançada, confessa uma mentira para Martha.
Seguindo os passos de O Último Filho, Intermezzo faz uma inteligente ponte entre passado e presente a partir de um ponto de vista familiar, ressaltando a importância das relações paternas e maternas, mostrando um pouco mais da pessoa incrível que Kal-El é, seja como filho, seja como herói. O que era para ser apenas uma aventura incidental, para “tapar buraco”, acabou sendo uma boa adição ao escopo de laços pessoais e convivência então em andamento, além de mostrar valores que o roteiro de Johns e Donner vinha investindo desde AC #844.
A parte final da batalha contra o Devorador de Sóis é um tantinho rápida demais, com um desfecho que confunde e nos deixa um pouco insatisfeitos, mas nada muito grave ou que tire o brilho do que veio antes e do que vem depois. Destacam-se o reconhecimento e agradecimento dos alienígenas salvos e a conversa e discussões de diversos assuntos entre pai e filho, um daqueles momentos em que alguém realmente descobre o quão grande é a pessoa à frente dela. Uma conversa que marca Jonathan para sempre, criando um ponto fixo de fé no filho, independente do mal que pudesse tê-lo acometido.
Intermezzo (Action Comics #847) — EUA, abril de 2007
Roteiro: Dwayne McDuffie
Arte: Renato Guedes
Arte-final: Renato Guedes
Cores: Renato Guedes
Letras: Travis Lanham
Capas: Renato Guedes
Editoria: Nachie Castro, Matt Idelson
24 páginas
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Depois que a narrativa interrompida voltou, na edição #851, muito da força na história principal parece ter se dissipado. Isso talvez tenha sido desencadeado pela preparação de terreno para a finalização do arco ou talvez pela quebra um pouco repentina demais do ritmo anterior; mas o fato é que existe uma diferença de tom do roteiro, que só é retomada aos poucos no Anual #11 da Action Comics Vol.1. Apesar do elemento plenamente emocionante com Mon-El (Lar Gand) e do conhecimento geral das motivações em jogo, a edição #851 vai por um caminho paralelo, ampliando a ação de Zod, Dev-Em, Non e Ursa na Terra, cujo clímax é o aprisionamento da Liga da Justiça (ponto não tão interessante da trama) e a aparente vitória dos ex-prisioneiros. Isso abre as portas para o plano de Luthor ser colocado em ação. Do momento em que Superman chega ao laboratório em diante, o tom da primeira parte da história reaparece no texto.
A batalha final é instigante e termina com um momento triste para Kal-El, apesar da salvação da Terra. A boa escolha de Johns e Donner em fazer desse primeiro momento um sacrifício do pequeno Lor-Zod definiu muito bem o personagem, delineando ainda mais a sua personalidade, os valores e a visão de mundo do garoto, mesmo tendo nascido em uma prisão e sido filho pais criminosos. Nossas origens não necessariamente definem quem somos. O amor, as boas relações e a oportunidade de fazer diferente é que nos transformam, são capazes de nos redefinir. O Último Filho é mais uma das muitas provas disso.
Superman: O Último Filho (Last Son) — EUA, 2006 – 2008
Contendo: Action Comics #844 – 846 e 851 + Action Comics Annual #11
No Brasil: Eaglemoss, 2014
Roteiro: Geoff Johns, Richard Donner
Arte: Adam Kubert
Arte-final: Adam Kubert / Stéphane Roux
Cores: Dave Stewart / Edgar Delgado
Letras: Rob Leigh
Capas: Adam Kubert
Editoria: Nachie Castro, Matt Idelson
160 páginas