Home LiteraturaConto Crítica | A Tumba, Dagon e Uma Reminiscência do Dr. Samuel Johnson, de H. P. Lovecraft

Crítica | A Tumba, Dagon e Uma Reminiscência do Dr. Samuel Johnson, de H. P. Lovecraft

por Luiz Santiago
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Howard Phillips Lovecraft, nascido na cidade de Providence (Rhode Island) em 20 de agosto de 1890 e falecido no mesmo lugar, em 15 de março de 1937. Criador de uma linguagem muito particular de terror em suas obras, o COSMICISMO ou HORROR CÓSMICO, Lovecraft fez de suas fantasias, ficções científicas e ficções sobrenaturais um verdadeiro marco na literatura, não só dos Estados Unidos, mas mundial. Infelizmente, o autor não conheceu o sucesso em vida, mas seus textos de olhar pessimista para o Universo e para os seres que nele habitam (os humanos eram absolutamente insignificantes no meio de tanta “grandeza maior e desconhecida” à sua volta) sobreviveram e conseguiram alcançar público e fama com o passar dos anos.

Lovecraft foi um autor tremendamente prolífico. Ele começou a escrever na infância, mas seus trabalhos hoje celebrados fazem parte da “carreira literária madura“, que começou em 1917, quando escreveu o conto Dagon (publicado apenas em 1922). Ele nunca chegou a escrever um romance, no sentido estrito do termo. Sua obra de ficção é composta essencialmente de contos e novelas, com diferentes estilos de abordagem e gêneros. Em sua bibliografia, porém, é possível encontrar centenas de poemas, colaborações com outros escritores, revisões, trabalhos como ghost writing, cartas, artigos filosóficos, artigos científicos e artigos literários. No presente compilado, trago as críticas para os seguintes contos da carreira madura do autor: A Tumba, Dagon e Uma Reminiscência do Dr. Samuel Johnson, todos de 1917.

A Tumba

Homens com um intelecto mais aberto sabem que não existe uma distinção clara entre o real e o irreal; que todas as coisas se manifestam do seu jeito apenas graças aos delicados canais físicos e mentais por meio dos quais nós nos tornamos conscientes delas; mas o materialismo banal da maioria condena como loucura os lampejos de uma visão extraordinária que consiga penetrar o véu comum do empirismo óbvio.

Jervas Dudley

Escrito em 1917 e publicado em 1922, na revista pulp The Vagrant, A Tumba foi o início da carreira madura de H. P. Lovecraft. Prolífico e sempre muito imaginativo, o autor produzia desde os seis anos de idade, mas foi em A Tumba, escrito quando ele tinha 27 anos, que se deu a partida para o clímax de sua carreira. Na história, conhecemos Jervas Dudley, que não esconde sua “situação delicada” para o leitor. Ele está em um hospício e teme que os fatos narrados por ele possam ser desacreditados ou mal interpretados pelo público. Isso faz com que sua narrativa seja entrecortada por momentos de [pretensa?] sanidade, com ele dizendo que não falará sobre determinada coisa, que não deve dizer isto ou aquilo, que não vai explorar determinada situação por ele vivida. Na narrativa, isso funciona mais ou menos como pontadas de anticlímax para o público, que em dado momento enjoa de tanto “pé atrás” do moço. Mas não é sempre assim. Em boa parte das passagens, a decisão de calar-se diante de alguns mistérios cai muito bem.

O mais chocante neste conto é que o protagonista começa, aos 10 anos de idade, a ter “contatos imediatos” com um mundo ignorado pela maioria das pessoas. E por se tratar de uma criança, a primeira coisa que pensamos é justamente no gancho (genial!) que o autor coloca no início. O que estamos lendo? O relato de um jovem de vinte e tantos anos que “enlouqueceu”, foi colocado no hospício e agora fala sobre uma estranha experiência tumular e espiritual? O relato de alguém que foi enlouquecendo desde a infância? Ou o relato de um homem realmente sensível às coisas não-empíricas e que nos conta algo difícil de acreditar ou aceitar, sob as regras comuns da sociedade, da ciência, da lógica? O dilema sobre os canais de manifestação do real e a interessantíssima discussão sobre dimensões se cruzando é um dos grandes triunfos do conto, que vai gerando primeiro um medo inocente e depois um medo mais sólido, cada vez mais real.

A prosa de Lovecraft é encantadora. E erudita, em certos pontos. Ele cita Vidas Paralelas, de Plutarco, e faz uma relação instigante sobre a reencarnação, uma das mais interessantes que eu já vi dentro do contexto macabro à la “história de fantasmas“. Quando Jervas vê a inscrição no caixão (J.H.) eu achei, a princípio, que se tratava de um erro de tradução (até porque eu já não vinha gostando do trabalho de Jorge Ritter na antologia da L&PM Pocket intitulada A Tumba e Outras Histórias). Mas eu voltei o parágrafo e então algo clicou. Se J. Hyde (J.H.) não pode ser enterrado na tumba da família — porque suas cinzas foram espalhadas “por todas as direções” –, então Jervas Dudley só poderia ser a reencarnação desse “membro perdido” da família que, enfim, encontrou o caminho de um corpo, via um antigo laço de sangue, para retornar ao seio sepulcral dos Hyde, preparado para ele há muitos e muitos anos! É genial ou não é? Talvez o autor tenha pesado um pouco a mão no didatismo dos últimos parágrafos, como se quisesse nos fazer REALMENTE considerar a dualidade central do conto — um capricho desnecessário, já que isto estava perfeitamente exposto na abertura — mas a obra, ainda assim, permanece muito boa.

A Tumba (The Tomb) — Estados Unidos
Datas de escrita e publicação originais: junho de 1917 e março de 1922
Publicação original: The Vagrant
No Brasil: A Tumba e Outras Histórias (L&PM Pocket)
Autor: H. P. Lovecraft
Tradutor: Jorge Ritter
25 páginas

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Dagon

Então de repente eu a vi. Com apenas uma leve agitação para indicar sua subida à superfície, a coisa emergiu para fora das águas escuras. Enorme, polifêmica e repugnante, ela disparou como um monstro estupendo do pesadelo para o monólito, sobre o qual jogou seus gigantescos braços escamosos, enquanto inclinava a cabeça horripilante produzindo sons ritmados. Pensei ter enlouquecido então.

Os filisteus foram um antigo povo que habitou Canaã, parte da região mediterrânea onde hoje é o Estado de Israel. Dentre sua rica mitologia, havia um Deus chamado Dagon (também grafado como Dagom ou Dagantakala), que ao longo do tempo foi conhecido, dentre outras coisas, como o “Deus-Peixe” (no imaginário popular, fala-se de um Deus “meio-homem, meio-peixe“). Dizia-se que ele fazia toda a matéria vegetal crescer e decidia a parte dela que morreria, sendo assim atribuído às graças da fertilidade e pestes na Terra, como também à pesca. Seu reino era a “dimensão subterrânea“, ou melhor, a “dimensão subaquática“. O mais curioso é que Dagon, ou versões similares dele, era adorado em praticamente toda a Mesopotâmia, e não apenas na terra dos Filisteus, tendo uma série de templos espalhados pela região. Até a Bíblia fala desse Deus (o templo que Sansão destruiu foi um templo em homenagem a Dagon). E é para dentro de um dos templos desse Deus que a Arca da Aliança do povo hebreu é levada, em um dos muitos períodos de abandono do monoteísmo daquele povo.

Com base nessa imagem mitológica e no histórico religioso foi que Lovecraft criou a primeira criatura monstruosa de sua carreira literária madura. Aqui, um militar viciado em morfina nos conta um evento que aconteceu durante a Primeira Guerra Mundial, quando seu navio foi capturado. Ele conseguiu escapar com um barco e provisões, e navegou mais ou menos sem ter noção para onde, sabendo apenas, a partir de certo ponto da narrativa, que está abaixo da Linha do Equador, mas sem noção da longitude. Então acontece o evento que dará corpo ao conto e trará Dagon à tona. Toda a construção e apresentação de Lovecraft nesta primeira parte da história é aplaudível. O medo de ficar perdido no mar e a aparição de um pântano extremamente fedorento “do nada”, e que depois de alguns dias o permite caminhar e chegar a um misterioso Monolito, é escrito com cuidado para segurar algumas informações e entregar outras, atiçando a curiosidade do público. O problema vem quando o personagem (sem nome) chega ao espaço geográfico “mitológico”. O curioso é que é aí que reside o clímax da obra, e onde ela, de repente, perde forças.

É como se todo o furor de descoberta, a caminhada, a descrição desse lugar misterioso que veio das profundezas do oceano fossem, de repente, um incômodo que precisasse ser resolvido. Diferente de seu trabalho anterior, A Tumba, não existe um aproveitamento devido da grande surpresa, ainda mais porque estamos falando de um monstro! Conteúdo e força dramática é que não faltam para as linhas narrativas desse cenário, mas a boa preparação que é feita no início da obra não acompanha o seu clímax. Ainda é preciso citar que o ponto de vista do militar é relativamente confuso. Eu chequei uma outra tradução para ver se o problema era e leitura feita por Guilherme da Silva Braga para a Editora Hedra, mas não. Há algumas passagens realmente confusas. Isso, porém, seria mais facilmente perdoável se o bloco com Dagon fosse um pouquinho maior…

Já no final do conto, temos o momento de desespero muito bem pensado, onde nos questionamos sobre o que lemos e sobre a sanidade e percepção do próprio narrador. Pode parecer apenas uma repetição do relato de Jervas em A Tumba, mas trata-se de algo novo, dentro do mesmo princípio. A atmosfera de terror, a despeito do tropeço do autor na reta final, não nos abandona, de modo que terminamos o conto com medo de olhar para uma janela próxima… Eis aí o exemplo de poder que um bom texto de terror pode ter sobre nós.

Dagon — Estados Unidos
Datas de escrita e publicação originais: julho de 1917 e novembro de 1919
Publicação original: The Vagrant
No Brasil: Os Melhores Contos de H.P. Lovecraft (Editora Hedra, 2015)
Autor: H. P. Lovecraft
Tradutor: Guilherme da Silva Braga
12 páginas

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Uma Reminiscência do Dr. Samuel Johnson

O privilégio de recordar, não importa se de uma forma cansativa ou demasiado extensa, é um dos que é tolerado entre os mais idosos, pois é muitas vezes através dessas recordações que as obscuras ocorrências da História, e as anedotas mais insignificantes acerca de certas personalidades distintas são transmitidas à posteridade.

H. P. Lovecraft escreveu este estranho conto em 1917, sob o pseudônimo de Humphrey Littlewit (que curiosamente também é o narrador da história). É claramente perceptível que o autor estava se divertindo muito com esse exercício literário “fora de seus padrões” (ou mais ou menos isso). E brincadeiras é o que não faltam aqui, tanto abordando questões um pouco macabras, como o fato de o narrador ser impossivelmente velho, tendo precisamente 228 anos quando narra essa história (ele nasceu em 20 de agosto de 1690, ou seja, 200 anos antes da exata data do nascimento de Lovecraft, vejam só as piscadelas do autor para nós). Amante de relíquias, de lendas e textos antigos, de vernáculos antigos do idioma inglês e de interessantes (e um tanto desconhecidas) personalidades da literatura, Lovecraft faz nesse conto uma comédia metalinguística com uma pitada de fantasia. Mas toda essa boa intenção nos leva do mais absoluto nada em direção ao portentoso lugar nenhum.

Não existe, aqui, uma história acontecendo. Nós até imaginamos, após um instigante início, que veremos o desenrolar de coisas misteriosas na cidade onde viveu o narrador; ou acontecimentos inexplicáveis que se passaram com seus amigos e familiares, mas nada disso acontece. Littlewit irá comentar sobre sua vida de crítico, tendo ajudado a fundar um grupo um tanto famoso de literatos, tendo conhecido muitos escritores, poetas, pensadores… e mais nada. A mais profunda chatice que se disfarça um pouco, no início, pelo fornecimento de uma atmosfera que sequer é tocada no conto; e no final, por qualquer possibilidade “além do tédio” que o leitor possa imaginar do pedido de descanso feito pelo personagem. Humphrey Littlewit, definitivamente, não tinha a habilidade de nos encantar, como H. P. Lovecraft.

A Reminiscence of Dr. Samuel Johnson — Estados Unidos
Datas de escrita e publicação originais: c. julho-setembro de 1917 e setembro de 1917
Publicação original: United Amateur
Autor: H. P. Lovecraft (sob pseudônimo de Humphrey Littlewit)
5 páginas

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