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Crítica | Elric: O Trono de Rubi

por Daniel Tristao
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Desde 2017 várias publicações têm deixado os fãs de fantasia, espada e feitiçaria mais do que contentes no Brasil. Muitos novos títulos inundaram o mercado de quadrinhos nesse período, sendo alguns destaques a coleção de Conan pela editora SalvatEspadas e Bruxas, Ragnarök, Marada – A Mulher-lobo, Elfos, o livro Conan, o Bárbaro (que reúne os contos originais de Robert E. Howard), fora a infinidade de títulos, também do Cimério, publicados regularmente pela editora Mythos já há algum tempo. Mesmo que boa parte desse material esteja relacionada a um mesmo personagem (adivinhou quem é?), é inegável o fato de que muitas editoras têm percebido o aumento do interesse por este tipo de conteúdo e, por isso, procuram emplacar outros materiais relacionados, como é o caso de Elric – O Trono de Rubi.

Concebido na literatura pelo britânico Michael Moorcock em 1961, no conto chamado The Dreaming City, e estrelando vários outros títulos posteriores, o personagem já teve algumas outras adaptações para os quadrinhos. No entanto, a presente obra, escrita pelos franceses Julien Blondel e Jean-Luc Cano, seguramente é uma das mais competentes (senão a mais) já produzidas. Nas palavras do próprio Moorcock, “(…) a aventura que você está prestes a ler é a história do albino que eu mesmo teria escrito caso tivesse pensado nela antes”. Bem, diante de uma outorga como esta, é difícil crer que o presente material não seja de fato muito bom.

Aproveitando a deixa para estabelecer um paralelo, pode-se dizer que Elric, em suma, é um personagem que subverte os valores de Conan. Enquanto o Cimério é virtuoso (honrado, leal e justo), apesar de multifacetado, Elric é o seu oposto em certa medida, pois tais características se aplicam de uma maneira totalmente distorcida em seu universo. Por exemplo, enquanto Conan tem um senso de justiça altamente definido e muito próximo daquilo que consideramos correto, (e, justamente por isso, conseguimos, em muitos casos, prever como o personagem vai reagir), Elric é regido por valores completamente diferentes (além de ter uma mente muito mais perturbada), fazendo com que suas decisões sejam bem mais imprevisíveis. Desta forma, apesar de ser uma história do mesmo gênero, Elric é um personagem carismático por motivos inteiramente diferentes.

Elric, o Lobo Branco, é o herdeiro legítimo do Trono de Rubi, imperador do decadente e degenerado Reino de Melniboné, cuja capital é Imrryr e que, apesar de tudo, está destinado a ser o responsável pela derrocada de seu povo. Nascido albino e de saúde fragilizada, Elric depende de feitiços e sacrifícios de sangue regulares para manter ou restaurar sua vitalidade. No entanto, como feiticeiro poderoso e erudito, seu maior poder não reside nos músculos; tal característica, porém, é vista como fraqueza por muitos, principalmente seu primo, Yyrkoon. “A glória de Melniboné não foi forjada no silêncio das bibliotecas, mas no sangue, no terror e nas almas pisoteadas de seus inimigos”.

Os melnibonianos são, por natureza, servos dos Mestres do Caos (deuses malignos, como Arioch, que exigem constantes sacrifícios e massacres em seus nomes). Elric, no entanto, diferente do que fizeram seus antepassados, incluindo seu pai, reluta em invocá-los, pois sabe que o preço cobrado é alto demais. Diante disso, seu primo o desafia constantemente e elabora diversos estratagemas para tirá-lo do poder e assumir a coroa. O mais recente deles é quando Yyrkoon vaza informações que permitem a invasão da cidade Imrryr por mercenários vilmirianos, seguido do rapto de Cymoril, sua própria irmã e consorte de Elric. É neste conflito que reside a trama principal da história, contada aqui em dois capítulos que fecham um arco (ambos reunidos nesse volume, representando duas edições da publicação original).

Além de um protagonista suficientemente complexo, a obra conta com uma excelente caracterização do reino de Melniboné. O texto de Blondel, no capítulo inicial, nos faz perceber rapidamente que os valores e princípios que regem esse povo são muito diferentes daqueles dos quais estamos acostumados. Humanos e melnibonianos de classes menores, por exemplo, são considerados seres inferiores e, por isso, escravizados e sacrificados como se fossem meros insetos. A forma como os melnibonianos torturam, evisceram e se banqueteiam com os humanos, de inúmeras formas ao longo da trama, impressiona pela naturalidade. Logo no início, Yyrkoon quebra o pescoço e esmaga os olhos de uma de suas servas como se estivesse jogando um copo ao chão num momento de raiva, durante uma discussão. Ao mesmo tempo, a caracterização estética dos personagens, que utiliza couro, correntes, marcas pelo corpo e outros ornamentos que remetem à cultura gótica, nos faz lembrar imediatamente do universo de Hellraiser. Tais elementos combinam perfeitamente com a barbárie e perversidade presentes nas ambientações e na natureza dos melnibonianos.

Elric, por sua vez, não tem a mesma essência bárbara dos seus concidadãos, embora promova e tolere algumas atitudes parecidas. Em dados momentos, o texto sugere que Elric o faça, às vezes, para agradar seus liderados. “Teu coração se acalma quando dou mostras de crueldade”, diz o soberano a certa altura. Desta forma, o protagonista caracteriza-se como um anti-herói, pois não desfruta de virtudes comuns ao heroísmo. Ou até as tem, mas de maneira completamente distorcida, em vista do ambiente atroz que o cerca.

Ainda sobre a caracterização de Melniboné, o elemento estético tem uma importância fundamental na obra, pois uma imagem poucas vezes valeu mais do que mil palavras tanto como aqui. A equipe de quatro desenhistas (Didier Poli, Robin Recht, Julien Telo e Jean Bastide) representa os cenários, paisagens e ambientações de uma forma absolutamente imponente. Em várias páginas, o leitor se sente impelido a investir alguns minutos apreciando a beleza e os detalhes da composição. A Ilha do Dragão, o Trono de Rubi, a cena das fragatas no labirinto, a furiosa onda de Straasha e a cidade de Dhoz-Kam são só alguns exemplos dos magníficos desenhos da equipe criativa. Além disso, há de se enaltecer a capacidade ímpar de se trabalhar com uma equipe grande sem perder a identidade visual; certamente foi um trabalho árduo que se justifica pela beleza, detalhamento e unidade das ilustrações.

No segundo capítulo o tom da trama muda consideravelmente (talvez, pelo fato de Julien Blondel dividir os créditos do roteiro com Jean-Luc Cano, o que não ocorre no capítulo inicial). O clima de tensão e traição iminente, criado principalmente pela relação conflituosa entre Elric e Yyrkoon, dão lugar ao aprofundamento da relação de Elric com as Divindades do Caos, dos oceanos e da terra, com o intuito de localizar e resgatar Cymoril, além de punir Yyrkoon por seus crimes. Desta forma, os autores dão ainda mais espaço ao Rei Albino, nos fazendo entender melhor os motivos que o levam a evitar (ou adiar, na verdade) o entrelaçamento de seu destino ao dos deuses perversos. Boa parte do capítulo se dedica a isso, até próximo do fim, quando os primos finalmente se encontram e lutam por Cymoril e pelo trono.

Elric – O Trono de Rubi consegue traduzir para os quadrinhos, de forma precisa e respeitosa, a essência da obra de Michael Moorcock, ao mesmo tempo em que lança um novo olhar sobre elementos consagrados das origens do personagem, conferindo identidade própria à adaptação. No final da história, além de encontrarmos os personagens em situações interessantes, também somos apresentados a novos elementos que podem ser muito bem explorados na continuação (incluindo a amaldiçoada espada Stormbringer). Sua conclusão surpreendente nos faz querer revisitar o famigerado Reino de Melniboné muito em breve.

Elric – Tome 1: Lê trone de rubis (França, 2013); Elric – Tome 2: Stormbringer (França, 2014)
Editora original: Titan Comics
No Brasil: Elric – O Trono de Rubi (Mythos, 2017)
Adaptação e roteiro: Julien Blondel e Jean-Luc Cano
Ilustrações: Didier Poli, Robin Recht, Julien Telo e Jean Bastide
Cores (somente do capítulo 2): Scarlett Smulkowski, Robin Recht e Jean Bastide
124 páginas

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