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Crítica | Outubro (1927)

por Guilherme Almeida
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Costuma-se dizer que o cinema é uma mistura de artes diversas, como o teatro, a música e a literatura. Mas urge ressaltar que ele não é “só” isso, ou seja, que ele não pode ser reduzido a ponto de encontro de determinadas expressões estéticas. O cinema, na realidade, apresenta também a sua especificidade artística, possui procedimentos próprios que o diferenciam e o singularizam, sendo eles a expressividade da câmera e a técnica da montagem. Por meio da primeira, o jovem veículo se afasta do teatro, marcado pela circunscrição espacial e pela imobilidade do palco como moldura para o mundo apresentado; através da segunda, ele se define, por excelência, como arte da descontinuidade.

Embora seja da natureza dos filmes o arranjo de fragmentos, chamados cenas, nem sempre — e, na verdade, quase nunca — esse caráter fragmentário vem à tona e salta aos olhos. No mais das vezes, os artistas envolvidos na produção das obras cinematográficas procuram esconder a ruptura visual, fazendo com que os espectadores não tenham dela plena consciência. Os excertos justapostos se configuram, aos olhos do público, como se não fossem interrompidos pelo corte; tudo se passa no sentido de abrandar a sensação de incompletude. Assim, a qualidade de manufatura manipulada dessa arte se acoberta, e ela se nos apresenta como janela aberta para o mundo, através da qual olhamos e na qual encontramos dramas específicos com os quais nos identificar.

Há vezes, no entanto, em que a busca do ilusionismo não guia a produção das películas. Nesses casos, a linguagem cinematográfica se afirma enquanto tal, sem se subsumir no efeito de absorção diegética do público encantado. Feito um mágico que mostra os próprios truques, esse tipo de cinema escancara as portas para a compreensão do funcionamento de seu discurso. Das obras que seguem este ditame, vou me concentrar num autor e composição específicos, ambos brilhantes, ambos históricos. Sergei Mikhailovitch Eisenstein, ecce homo; Outubro (1927), eis a obra.

Eisenstein é, em simultâneo, um dos maiores diretores e teóricos cinematográficos que já houve. Autor de ensaios e de filmes, sua trajetória intelectual e criativa está colada à efervescência cultural que rodeou a iminência e a consequência da Revolução na Rússia. Uma pletora de discussões incendiárias foi levantada, manifestos escritos, obras projetadas. O cinema, à essa altura já acolhido por parcela majoritária da elite intelectual local, era objeto de pesquisas extasiadas, preocupadas em analisar sua eventual natureza, bem como suas diversas potencialidades nos níveis estético, político e propagandístico. Inscrito no rol desses pensadores, Eisenstein foi quem legou as maiores contribuições para a formação de uma teoria da montagem. A complexidade dessa arquitetura conceitual é espantosa; suas implicações são longevas e marcante sua presença em diversas realizações artísticas posteriores.

Outubro (filme dedicado ao proletariado de Petrogrado) é o terceiro longa do cineasta soviético, e foi dirigido por este juntamente com Grigoriy Alexandrov. Foi antecedido, em 1925, por A Greve e pelo O Encouraçado Potenkim, o clássico dos clássicos. O filme de 1927, conforme evoca o título, trata da Revolução Russa ocorrida em outubro de 1917, ainda abarcando, além desse período, momentos anteriores, tais quais a deposição do czar Nicolau II e a formação de um Governo Provisório sob o domínio de Kerensky (Nikolay Popov). O enredo tematiza o júbilo esperançoso que decorre da queda da aristocracia, mas também o fracasso do governo estabelecido logo a seguir, fraco, corrupto, antipopular e contrarrevolucionário. Reforça a negatividade do (des)mando a forma como Kerensky é retratado: um líder apático, acossado, descolado das demandas do proletariado e dos camponeses.

O líder “bolchevique” Lênin (Vasili Nikandrov), radicalmente desejoso de uma revolução de fato estrutural, volta para a Rússia em abril de 1917, sendo, porém, logo marginalizado e perseguido pelos “mencheviques”. A batalha será travada entre esses dois grupos e contraporá o reformismo ao radicalismo, a manutenção parcial do status quo à tentativa de fazer dele tábula rasa, de modo que não sobre pedra sobre pedra. Eisenstein claramente escolhe o lado bolchevique, e sua montagem imprime tanta força e ímpeto ao movimento subversivo que até o mais conservador dos espectadores se sentirá tentado a vibrar com as conquistas do trator extremista. A parcialidade do diretor deve ser focalizada, para que se discirna o que há nessa obra de histórico, por um lado, e propagandístico e panfletário, por outro. Os dados do roteiro e as características da montagem são influenciados por cartilhas ou demandas políticas, vindas de cima e impostas abaixo. A liberdade do autor está longe de ser plena: uma amostra disso pode ser encontrada nos problemas que Eisenstein teve com a mão de ferro do facínora Joseph Stalin, ditador que impôs a censura de várias sequências que mostravam o líder popular Leon Trótski, um de seus grandes inimigos políticos.

Outubro tenta, com efeito, exprimir uma tese política por meio de artifícios vários, todos eles associados à eloquência da montagem. Ela é perfeita para guiar o espectador em direção a uma trilha conceitual bastante específica, sem conceder ao filme a possibilidade de ambivalência dos conteúdos; ela implica a expressão de hierarquizações visuais (criadoras de graduações morais), frente às quais, graças à competência do procedimento, amiúde achamo-nos desarmados. Montagem, em Eisenstein, significa justaposição de elementos descontínuos com vistas ao surgimento de determinados conceitos ou ideias na mente do observador. Herdeiro da melhor tradição dialética, o diretor replica na forma de seus filmes a dinâmica do choque entre tese e antítese, o qual provoca uma síntese que é formada por e transcende as anteriores. Desse modo, chocam-se duas imagens e nasce, segundo o próprio autor em um de seus ensaios, uma “terceira coisa”, não a soma de um plano mais outro, mas o produto.

Assim, em nome da edificação de enunciados intelectualmente coerentes, Outubro, devido à profusão de cortes, perde a continuidade visual. É na base do salto de uma imagem a outra que o filme estabelece relações de semelhança semântica entre os planos, exigindo do espectador a reconstrução do sentido extraível do encontro entre eles. Exemplificando: no começo do longa, o governo provisório alça as pontes que ligam o centro aos bairros; Eisenstein lança-nos outra obra arquitetônica, absolutamente extrínseca ao contexto histórico e geográfico do longa: trata-se da Esfinge egípcia. Os que assistem ao filme devem encontrar entre os dois elementos colididos uma vizinhança de sentido e concluir que a evocação do passado ilumina, no presente, a grandiosidade da ponte e, agora em termos negativos, o autoritarismo opressor do governo que se diz popular.

Se Eisenstein constrói sua obra de maneira centrípeta, sem grande margem de erro para interpretações distintas das pretendidas pelo autor, esse efeito é muito ressaltado pelo poder da trilha. Ela como que acompanha ritmicamente a aceleração da montagem, jogando os espectadores numa procela difícil de se resistir. Eisenstein sabe como poucos conquistar os corações e mentes. É extremamente difícil enfrentar os apelos afetivos e sensoriais de seus filmes. No caso específico de Outubro, podemos notar a maneira calculada como os conflitos históricos são dirigidos ao clímax vigoroso. Lembro claramente do meu ânimo ao acompanhar a entrada dos bolcheviques no Palácio do Inverno, a deposição dos antagonistas. Tudo é violentamente acelerado, as atuações alcançam o paroxismo da expressividade, a trilha sonora explode de veemência.

O cinema de Eisenstein é uma sinfonia, um arranjo medido de excitações sinestésicas. Embora Outubro às vezes falhe ao agilizar demasiadamente as imagens, causando um efeito de estranhamento principalmente para a assistência atual; embora, por sua cartilha panfletária, seja incapaz de configurar personagens mais complexos e interessantes; embora não consiga construir sequências tão icônicas quanto a da escadaria de Odessa, presente no Encouraçado Potenkim; apesar, enfim, das imperfeições todas que lhe possam ser atribuídas, esse filme é contagiante, sua linguagem tem importância histórica, sua montagem é fundante de toda uma tradição cinematográfica. Lênin prometeu ao povo “paz, pão e terra”. Aos leitores que ainda não o conheçam, garanto que a experiência desse filme proporcionará talento, rigor formal e emoção.

Outubro (Oktyabr) — URSS, 1927
Direção: Grigori Aleksandrov, Sergei Eisenstein
Roteiro: Grigori Aleksandrov, Sergei Eisenstein (com intertítulos de Boris Agapow e baseado no livro de John Reed)
Elenco: Nikolai Popov, Vasili Nikandrov, Layaschenko, Chibisov, Boris Livanov, Mikholyev, Nikolai Padvoisky, Smelsky, Eduard Tisse
Duração: a versão que eu assisti para escrever esta crítica é a de 115 min. (versão do DVD Especial), mas existem outros cortes: 95 min. (EUA), 104 min. (Suécia), 127 min. (versão 20fps) e 142 min. (versão da restauração de 2007, realizada na Finlândia).

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