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Crítica | O Estranho Mundo de Zé do Caixão

por Luiz Santiago
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Depois do lançamento de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967), o diretor José Mojica Marins esteve envolvido em um projeto coletivo ao lado de Ozualdo Candeias e Luís Sérgio Person (que faz um pequeno papel aqui em O Estranho Mundo…), um longa em episódios chamado Trilogia de Terror, que estreou em abril de 1968. Influenciado por esta experiência, Marins assumiu a mesma forma episódica em seu próximo filme, rodado e lançado no final em 1968: O Estranho Mundo de Zé do Caixão. Apesar do título, o personagem Zé do Caixão não faz parte de nenhum conto da obra, mas temos aqui um de seus alter-egos, ou talvez ele mesmo disfarçado de professor. Com música-título escrita por Marins e executada por Edson Lopes e o grupo de samba Titulares do Ritmo, a fita é dividida em três perturbadores episódios, cada um com uma temática de terror diferente, mostrando os muitos desvios comportamentais humanos e até onde a maldade consegue ir.

O primeiro desses episódios é O Fabricante de Bonecas. Nele, um artesão de brinquedos em um bairro de São Paulo é admirado pelas bonecas realistas que faz, um trabalho realizado ao lado das quatro filhas. O principal elemento de destaque dessas peças são os olhos e uma conversa sobre eles é o ponto de partida para o primeiro bote narrativo do filme, colocando quatro assaltantes entreouvindo a prosa de um dos fregueses do bar, dizendo para o balconista que o velho fabricante de bonecas ganhava bastante dinheiro e que guardava tudo em casa. De imediato são lançadas as deixas da lascívia e ganância dos homens, assim como em um primeiro momento, a aparente inocência do velho e suas filhas, supostamente vítimas dos ladrões, assassinos e estupradores.

Após uma abertura bastante insatisfatória, com o discurso inicial de reflexão sobre o homem e a condição da vida —  marca na maioria das vezes desnecessária dos terrores de Mojica — e também após uma introdução solta em uma boate, a obra passa a tomar caminhos realmente notáveis, especialmente na concepção das histórias, que é de fato a melhor coisa do filme. A montagem, a edição e a mixagem de som são bastante sofríveis, mas a densidade dos temas, as excelentes ideias que o diretor teve para levar essas tramas adiante (suas falhas são mais na direção de planos de contexto na mudança de cenários, elemento não corrigido e ainda piorado pela montagem) mais o tom de sacrilégios e horror dado aos contos acabam superando boa parte desses impasses.

O segundo ato, Tara, é o que mais problemas de ritmo e direção possui, com a história de um pobre e feio vendedor de balões que tem um fetiche por pés e fica obcecado por uma jovem mulher, seguindo-a por diversos lugares, observando-a andar pela rua, ir à uma loja, casar-se e ver uma grande tragédia acontecer. A partir deste momento o conto ganha fôlego de sobra. De uma sugestão macabra um tanto risível (um homem segurando balões e perseguindo uma mulher… convenhamos), o enredo abraça algo realmente medonho, com o homem dos balões realizando o seu grande sonho com a pessoa pela qual estava obcecado a tanto tempo. Novamente, a força e significado dos acontecimentos superam os erros de execução.

Por fim, temos o melhor e mais longo segmento da película, Ideologia, que traz o Professor Oãxiac Odéz (Zé do Caixão de trás para frente) sendo entrevistado, defendendo suas ideias em relação ao instinto versus razão. A planificação utilizada por Marins é incrível. Ele faz tomadas de diferentes ângulos da bancada, mostrando os debatedores, as câmeras, o microfone e as mãos de Odéz, mas só muito depois levantando a objetiva para revelar o rosto do personagem, que convida um de seus maiores antagonistas na entrevista a visitá-lo (convite estendido também para a esposa do homem). O casal vai à casa do professor e tudo termina em aprisionamento e uma série de obstáculos sádicos colocados aos visitantes, também submetidos a inanição e exibições de rituais envolvendo tortura, agressão e canibalismo, tudo para provar para o jornalista que o instinto supera a razão e o amor.

Com um número pequeno de erros estruturais graves e tremenda exposição da maldade, Ideologia também pode ser visto como uma metáfora para a maneira com que certas sociedades e grupos sociais agem para ter suas ideias “aceitas” e em “plena concordância” pela massa. A ideia de provação ou punição para quem pensa diferente tendo, no final do trajeto, a absorção alienativa e traumática da ideia alheia é a espinha dorsal desta parte do filme, contando com o melhor encerramento possível, talvez o primeiro momento em que um filme de Mojica tenha causado medo genuíno no espectador. Dentre as obras deste gênero assinadas pelo cineasta, esta é a que primeiro mostrou grande poder em sua estrutura e, a despeito dos grandes problemas técnicos (principalmente em Tara), termina marcando positivamente a plateia e mostrando que José Mojica Marins é verdadeiramente um dos nossos cineastas mais transgressores.

O Estranho Mundo de Zé do Caixão (Brasil, 1968)
Direção: José Mojica Marins
Roteiro: Rubens Francisco Luchetti (baseado em história de José Mojica Marins)
Elenco: Luís Sérgio Person, Vany Miller, Mário Lima, Verônica Krimann, Rosalvo Caçador, Paula Ramos, Tony Cardi, Esmeralda Ruchel, Messias de Melo, Leila de Oliveira, Jeff Ribeiro, Abigail de Barros, Nelita Aparecida, Íris Bruzzi, Ana María, Pontes Santos, Oswaldo De Souza, Nivaldo Lima, Salvador Amaral, Jean Garret, Maria Luiza Splendore, Neide Aparecida, Palito, Carlos Farah, Sebastião Grandim, Enzo Barone, Jaime Cortez, Laércio Laurelli
Duração: 80 min.

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