“Não nos interrogamos o tempo todo, sendo a lucidez absoluta incompatível com a respiração. Se estivéssemos a cada momento conscientes do que sabemos, se, por exemplo, a sensação de falta de fundamento fosse ao mesmo tempo contínua e intensa, cometeríamos suicídio ou cairíamos na idiotia.”
Emil Cioran em Exercícios de Admiração
Quando Raskólnikov se debruça sobre a égua espancada até a morte e chora sobre o focinho do animal em um sonho de Crime e Castigo, Dostoievski faz um pedido de perdão pela racionalidade humana. Friedrich Nietzsche repetiria o gesto em 3 de janeiro de 1889 ao se deparar com um cavalo maltratado pelos donos. O filósofo alemão avança sobre os homens aos brados, espantando-os e chorando abraçado ao focinho do cavalo. Não recuperou mais a sanidade depois daquele dia, conta-se. Trago esse curioso episódio para situar esses dois grandes pensadores em uma tradição que colocaria grande dúvida sobre a razão, quase sempre celebrada como uma conquista intocável. No cinema, o segundo filme da trilogia O Coração de Ouro, de Lars von Trier, promove um reencontro bastante nítido com o tema, mas em uma proposta em tudo distinta. Os Idiotas é também o segundo longa-metragem reconhecido pelo Dogma 95 e o único filme de von Trier tutelado pelo movimento.
Todo o processo de escrita do roteiro, filmagem e edição demorou apenas três meses. Mesmo os cinéfilos mais experientes costumam estranhar a estética crua e módica do filme. Os Idiotas é uma experiência radical, de testagem dos próprios caminhos do cinema ao final de seu primeiro século de existência. Enquanto Holywood exportava ao mundo seu modelo de cinema cada vez mais cosmético e cheio de truques, o núcleo de cineastas dinamarqueses pendia para o outro lado da balança, criando um cinema de vanguarda e contrário à individualização da sétima arte. Para eles, o cinema, tornado democrático e acessível a qualquer um, rumaria invariavelmente para a decadência. Era preciso discipliná-lo e uniformizá-lo, para que a arte conseguisse sobrepujar quaisquer maneirismos individualistas. É nesse esteio que surge Os Idiotas. Mas se Vinterberg fez um de seus melhores filmes no escopo do manifesto (Festa de Família), Lars von Trier não conseguiu o mesmo.
O tema da idiotia surge no grupo de jovens que decide entrar em “paranoia” em público, como eles mesmos designam o fenômeno. Violando pequenas leis do contrato social, como pagar a conta em um restaurante, os jovens intelectualizados resolvem comportar-se como retardados mentais para testar a reação da sociedade pequeno-burguesa de Copenhague. Os atores que interpretam o grupo até conseguem segurar bem o fio narrativo do filme. Destaque especial para Jens Albinus, interpretando Stoffer e Bodil Jorgensen, vivendo Karen. Se o primeiro é uma espécie de líder, a segunda é a última a entrar em paranoia. Todos eles assumem um discurso transgressor e antirracional e tratam com deboche aqueles que identificam como normais e enquadrados. O que recebem em troca varia da comiseração ao repúdio e nojo.
Há momentos, entretanto, em que o simulacro de idiotia parece se transformar em loucura de fato. Stoffer corre nu pelas ruas, bradando “fascista!” para um funcionário da prefeitura que tentava expulsá-los do bairro onde estavam. Em outro momento, será Jeppe que perderá o controle, jogando-se sobre o carro do pai de Josephine, que levava a moça embora contra a sua vontade. Nada disso, entretanto, é o bastante para dar suficiente estofo aos personagens de Os Idiotas. Todos eles parecem caricaturas de uma rebeldia excessivamente juvenil, que escolhe atos de transgressão até mesmo previsíveis para manifestar seu inconformismo. Lars von Trier não parece tentar conduzi-los a um lugar maior do que esse. Ao final, quando desafiados a entrar em “paranoia” onde seria mais arriscado, fica clara a sua hipocrisia e o limite até onde desejariam ir verdadeiramente em sua experiência.
Lars von Trier não morde as iscas de seu próprio roteiro. Os Idiotas não trata propriamente da loucura nem tem profundidade filosófica suficiente para desenvolver seu discurso antirracional. Seu niilismo afetado não cria personagens cáusticos o bastante para causar incômodo. Enquanto os niilistas de Dostoievski espalham o terror sobre uma cidade russa do século XIX (Os Demônios), em uma antecipação histórica acachapante dos regimes totalitários do século seguinte, o grupo de jovens de Lars von Trier não vai além de seus pequenos e banais atos transgressores, que não demoram a se esgotar. Exceção se faça à personagem Karen. Se ela é a última a enlouquecer, é também a única a alcançar de fato uma ruptura. Seduzida por algo que ainda não compreendia bem logo na primeira cena do longa-metragem, caberá a ela o passo final do qual seus companheiros recuaram. Seu niilismo é menos hediondo e mais silencioso. O único que me desperta algum interesse em todo o filme.
Os Idiotas é único na filmografia de Lars von Trier em muitos aspectos. Mas se o próprio diretor afirma que um filme deve ser como uma pedra no sapato, certamente não é com ele que o dinamarquês alcançou esse efeito. Um filme notavelmente menor, especialmente por se tratar de uma obra assinada por von Trier, ainda que seu nome não figure nos créditos (uma das cláusulas do Dogma). Após filmar Europa e Ondas do Destino, a segunda parte de sua primeira trilogia tropeça e carece de substância, ainda que a ousadia esteja lá, tentando retirar o espectador de seu conforto. Mas é pouco. Vale mesmo a experiência estética.
Os Idiotas (Idioterne) – Dinamarca, 1998
Direção: Lars von Trier
Roteiro: Lars von Trier
Elenco: Bodil Jorgensen, Jens Albinus, Anne Louise Hassing, Troels Lyby, Nikolaj Lie Kaas, Louise Mieritz, Henrik Prip, Luis Mesonero, Trine Michelsen, Anne-Greth Bjarub Riss, Paprika Steen, Knud Romer Jorgensen
Duração: 117 min.