O padrão da indústria literária pop atual, salvo as exceções que só confirmam a regra, é lançar livros que já nascem em formato de filme ou série de televisão e que são vendidos para estúdios ou canais de televisão antes mesmo de serem lançados. Não haveria nada errado nisso se a própria indústria cinematográfica de blockbusters não tivesse a tendência de valorizar obras de consumo fácil, que subestimam o espectador, colocando o sarrafo lá embaixo no lugar de exigir cada vez mais. Essa combinação é perniciosa e traiçoeira, pois cria uma espécie de paternalismo literário e cinematográfico que entrega tudo de bandeja e mima o leitor/espectador, deixando-o sempre em sua zona de conforto, jamais desafiando-o nem que seja só um pouquinho.
Jogador Nº 1 é um representante desse tipo de livro. Vendido em um leilão aguerrido mesmo antes de ser publicado, a obra parte de uma excelente e engajante premissa que serve de porta de entrada para uma aventura simpática e nostálgica que se vende tanto para quem viveu de verdade os anos 80 (o que é meu caso, diga-se de passagem), como para o público geek/nerd atual seco por obras que lidem com o seu próprio mundo. Nisso, o primeiro romance de Ernest Cline, que começou sua carreira com o roteiro de Loucos e Fãs (outra premissa incrível para um resultado menos do que ótimo), é mais do que eficiente. Afinal, colocar-se no lugar do adolescente Wade Watts que, por intermédio de seu avatar Parzival, participa de uma caçada a um literal e valiosíssimo easter-egg dentro do OASIS (o prêmio é toda a fortuna de seu criador e o próprio OASIS), uma programa de realidade virtual criado pelo falecido James Halliday, que se tornou a “realidade verdadeira” para centenas de milhões de pessoas em um mundo em 2044 devastado pelo aquecimento global, fome, falta de combustível e explosão populacional, é muito fácil, quase imediato.
A narrativa em primeira pessoa, claro, já ajuda muito, especialmente quando o narrador se apresenta como alguém no presente olhando para trás, pelo menos até que a primeira “chave” da caçada é finalmente achada por ele, depois de cinco anos de incessante procura. Quase que integralmente passado nesse sensacional mundo virtual criado por Halliday e seu amigo e sócio Og – em uma parceria mítica que muito claramente foi inspirada na relação entre Steve Jobs e Steve Wozniak -, esse universo ilimitado é repleto de recriações oitentistas, com “planetas” inteiros dedicados a fliperamas, outros a adorados universos de ficção literária e assim por diante. Até mesmo o sistema educacional foi trocado do real para o virtual, com aulas por intermédio de óculos e luvas que permitem o estudante a viajar pelos planetas nas aulas de ciências e por culturas há muito desaparecidas nas aulas de história. Por outro lado, o OASIS também funciona como uma forma de cada um de seus usuários distanciar-se do mundo físico, esquecendo-se das mazelas por que ele passa, algo que é abordado na narrativa de Cline apenas perfunctoriamente.
Aliás, a crítica social que o autor faz é o que o livro tem de melhor. Ela nos força a uma auto-crítica sobre nossos “relacionamentos” virtuais por intermédio de redes sociais e aplicativos de texto e voz e sobre o nosso suposto ativismo de computador, que substitui a vida como ela efetivamente é por alguns cliques impensados e, convenhamos, confortavelmente passivos. O OASIS é, apenas, uma extrapolação perfeitamente crível do que já existe hoje e que funciona – ainda que não intencionalmente – como aquela comida gostosa e gordurosa que nos dá prazer por alguns momentos e nos faz momentaneamente esquecer de nossos problemas.
O maior problema de Jogador Nº 1 é seu didatismo exacerbado. Este é o artifício literário mais simplista possível que rouba os leitores de qualquer semblante de desafio, impedindo-os de pensar. Cline dita como nós devemos nos sentir e escreve com todas as letras suas lições de moral não uma, não duas, mas dezenas de vezes. Basta notar quantas páginas são dedicadas ao anonimato no OASIS, fazendo com que Watts tenha amigos do peito, mas que ele nunca conheceu, cujas aparências verdadeiras ele ignora e cujos nomes reais ele não tem ideia. E tudo com o objetivo cansativo de tão repetido que é de reafirmar que “as aparência não importam” e coisas nessa linha. E as “lições” de Cline não param por aí. A grande vilã na história é a poderosa multinacional Innovative Online Industries – ou IOI – que emprega milhões em todo tipo de estratégia e truque, seja sujo ou não, para ganhar a corrida pelo easter-egg, deixando claro o recado anti-corporativista que o autor quer passar, ele mesmo de certa forma traindo-se ao estabelecer o OASIS como um… bem, oásis de igualdade social, ou seja, algo criado também por uma mega corporação multinacional, só que “boazinha”.
Mas o didatismo vai além das lições de moral. Todas as centenas e centenas de referências pop são exaustivamente explicadas ao longo do romance, nunca exigindo do leitor algum tipo de pesquisa externa ou aguçando sua curiosidade no processo caso não conheça determinada obra. Se um jogo criado em “1900 e guaraná com rolha” é mencionado, pode ter certeza que ele, suas regras, seu criador, o ano de criação e o contexto em que ele foi imaginado será mencionado no livro, tudo sob a desculpa do conhecimento enciclopédico oitentista que o protagonista tem. É claro que isso funciona muito bem para estabelecer esses mundos – físico e virtual – que fazem parte da realidade da obra, inclusive as muito bem boladas moradias nos subúrbios das cidades grandes em que traileres são empilhados, tornando-se prédios improvisados de aparência mais do que frágil, mas chega a um ponto que Cline começa a se repetir demasiada e desnecessariamente, como se o leitor não fosse capaz de pescar as coisas nas primeiras 18 vezes que ele escreve algo.
Pensando em retrospecto, talvez esse ponto seja o momento em que Parzival encontra a primeira chave (a de cobre) e vence o desafio do primeiro portão. Essa ótima, excitante e bem construída sequência narrativa transforma a obra em uma correria pelas outras duas chaves e seus respectivos portões, correria essa que perde em novidade e frescor e ganha em uma vilania mais do que previsível e lugar-comum vinda da IOI, representada por Nolan Sorrento (ou melhor, por seu avatar impessoalmente conhecido por IOI-655321), o líder da divisão de Oologia da empresa, que cuida exatamente da caçada pelo easter-egg e em um romance virtual que não funciona de verdade. Além disso, há muita repetição narrativa a partir da segunda chave, com artifícios e passagens sendo praticamente retrofitadas e reutilizadas sem nenhuma dor na consciência pelo autor, ainda que o clímax seja algo que, tenho certeza, será cinematograficamente esplendoroso.
E isso porque nem abordarei em detalhes as conveniências narrativas do livro de Cline. Apesar da profundidade dos conhecimentos de Watts e sua capacidade de fazer muito com pouco, o que realmente o faz transpor os obstáculos é sua sorte infinita, algo como se esse fosse o seu poder mutante. Quando o leitor se depara com uma solução baseada nesse artifício deus ex machina ele perdoa facilmente, pois faz parte do jogo. Mas, quando isso volta a acontecer diversas vezes seguidas – há toda uma razoavelmente longa parte do livro que se passa no mundo físico que é de rolar os olhos -, a imersão começa a ser quebrada, pois não há história que resista a soluções mágicas, tiradas da cartola pelo autor ou outras que são meros clichês básicos costurados em sequência sem que algo a mais nos seja apresentado para justificá-las efetivamente para além da vontade do autor de parecer original ou esperto, mal sabendo que a pouca originalidade que ele demonstra descamba logo para uma espécie de auto-plágio que faria Dan Brown orgulhoso.
Sei que meus comentários são majoritariamente negativos, mas isso não quer dizer que o livro é ruim de verdade. Em um universo teen-pop repleto de porcarias inomináveis, Jogador Nº 1 tem o seu valor justamente por criar um universo diferente e fascinante e por desavergonhadamente apelar para a nostalgia oitentista e para o mundo geek/nerd. É um grande afago a esse público cada vez mais importante (e em que me incluo) em um livro bem organizado, de leitura fácil – facílima – que pode ser consumido instantaneamente como Miojo. No entanto, meus pontos persistem e eles me incomodaram bastante, notadamente a subestimação do leitor e seu tratamento como um público que o autor precisa pegar na mão e ensinar cada passo de um caminho que, para começo de conversa, é bastante objetivo e simples. Infelizmente, porém, essa parece ser um característica cada vez mais cobiçada e valorizada, em um sinal dos exatos problemas que o próprio livro de forma transversa denuncia.
Jogador Nº 1, no final das contas, é aquela leiturinha básica de um final de semana relaxado em que o leitor não quer mais do que abrir um pacote de uma guloseima que adora e comer como se não existisse o amanhã. Seria perfeito se não fosse tão básico e se, com isso, não se auto-apagasse do cérebro a cada final de capítulo…
Obs: Tive a oportunidade de também escutar o áudio-livro em inglês de Jogador Nº 1 narrado por Wil Wheaton, famoso no mundo nerd/geek e citado na obra. Destaco essa questão, aqui, por ter sido a melhor narração de obra literária que já ouvi em minha vida até agora, tamanha é a empolgação do ator a cada capítulo, com uma voz clara, límpida, muito característica e fazendo grandes esforços para diferenciar os personagens sem ficar ridículo. Em havendo possibilidade, sugiro fortemente essa experiência auditiva em complementação à leitura, já que ela é sempre insubstituível.
Jogador Nº 1 (Ready Player One, EUA – 2011)
Autor: Ernest Cline
Editora original: Random House
Data original de lançamento: 16 de agosto de 2011
Editora no Brasil: Editora LeYa
Tradução para o português: Carolina Caires Coelho
Data de lançamento no Brasil: 08 de setembro de 2015
Áudiolivro (americano): Wil Wheaton (narrador)
Páginas (versão impressa brasileira): 464