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Crítica | Melancolia

por Marcelo Sobrinho
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Oh, Céus! – disse a pobre criatura – Será que o primeiro passo que dou no mundo já me conduz somente às tristezas?

Marquês de Sade em Justine ou As Desgraças da Virtude

Quando Justine surge em fade in, com seu olhar doente e combalido, enquanto pássaros mortos caem à sua volta, Lars von Trier dá início a um dos filmes mais interessantes de sua carreira mais recente. Novamente construindo seu prólogo em hiper slow motion – técnica já utilizada no anterior O Anticristo –, ele exibe uma série de acontecimentos que só serão bem explicados ao longo do filme. O prólogo de Melancolia é ainda mais deslumbrante e revela um mundo condenado, desfeito em ruínas, que só aguarda com a respiração suspensa pelo golpe final. Lars von Trier anuncia a tragédia e deixa claro que seu filme tratará de como se chegou a ela, sem nenhuma esperança de evitá-la. A abertura de Tristão e Isolda, ópera de Richard Wagner, eleva exponencialmente o drama da câmera ultra lenta.

Justine, nome que o dinamarquês dá à sua protagonista depressiva, interpretada por Kirsten Dunst, é também o de uma das principais personagens do controverso Marquês de Sade. Melancolia aprofunda a aproximação com a obra do escritor francês, que Lars von Trier já havia iniciado em O Anticristo, mas que agora se torna mais explícita ao construir um mundo vazio de sentidos a priori e que nos olha com profunda indiferença. Esse é o mundo em rota de colisão com o planeta Melancolia – aquele onde “todos nós encontramos apenas fel e espinhos”, para citar um trecho do próprio Sade. A debilidade física de Justine, cujo corpo resiste até a entrar numa simples banheira (fabulosa a interpretação de Kirsten Dunst), traduz esse sentimento de abandono em um mundo que só nos oferece seu desdém.

O começo do longa-metragem, que aborda o casamento malfadado de Justine, traz um novo ponto de desconfiança do diretor com relação à família. Em O Anticristo, a tragédia ocorre dentro do seio de uma família destruída pela morte do filho. Em Melancolia, a própria ideia de formação de uma família já encontra problemas. Quando o carro que traz os noivos à idílica mansão não consegue realizar a curva, Lars von Trier não esconde que algo está terrivelmente errado. Todo o ritual excessivamente protocolar e enfadonho a que Justine se submete só piora seu estado. Quando ela trai o marido na noite do casamento, não há nenhum prazer em seu ato. Há somente o desprezo por tudo à sua volta, já que ninguém consegue compreendê-la. Justine responde à indiferença do mundo com a sua própria.

A alusão à personagem Ofélia, da peça shakespeariana Hamlet e pintada por John Everett Millais em uma de suas telas mais conhecidas, evoca a morte trágica pela loucura. Mesmo sendo uma personagem secundária na peça, a jovem instiga por sua morte misteriosa, afogada nas águas de um rio em um suicídio presumido. Ofélia perde o amor do príncipe Hamlet, imbuído em sua vingança contra o tio Cláudio e também vê seu pai – Polônio – ser morto pelo príncipe. Sua fé no mundo fenece, tal como a de Justine em Melancolia. Há algo de muito profundo no definhamento espiritual por que passam as duas personagens. Ambas se entregam ao destino inexorável que veem diante de si – o aniquilamento e a morte. Enquanto todos ao redor lutam para encher suas vidas de significados (o filme escolhe o casamento como exemplo), Justine e Ofélia se entregam à aleatoriedade e ao caos. “O caos reina”, diz a raposa de O Anticristo. Em Melancolia, ele não só manterá seu reinado como o fará absoluto.

É interessante que Justine seja a única personagem que olha com fascínio para o planeta Melancolia. Seu rosto abandona a morbidez pálida presente durante todo o casamento e sorri com afeto e ternura para o astro ameaçador que paira no céu. Ameaçador apenas para os demais, pois a bela personagem de Kirsten Dunst encontra no planeta o fatalismo cruel que constitui sua única crença existencial. Justine, em um momento resplandecente da fotografia de Manuel Alberto Claro, deita-se nua sob a luz azulada do planeta. Aguarda pela colisão não com medo, mas com a ansiedade e o amor que unem dois amantes antes do encontro final. Para mim, a cena mais bela e curiosamente a mais erótica de todo o filme.

A personagem Claire (Charlotte Gainsbourg) representa o estupor de quem descobre que o fim está próximo. “A vida na Terra é má e estamos sozinhos” diz Justine à irmã. De todos os personagens de Melancolia, Claire é a mais vulnerável e indefesa. Sua consciência é exposta a céu aberto a um mundo gratuito, cujo fim só reafirma seu vazio absoluto. “O homem é uma paixão inútil”, afirma Sartre e essa ideia é especialmente dolorosa para a personagem de Charlotte Gainsbourg.  Seu marido – John (Kiefer Sutherland) – constrói um instrumento de arame para medir o tamanho do planeta Melancolia no céu. Sua tentativa de submeter a indiferença da Natureza aos caprichos da ciência fracassa completamente. Lars von Trier declara a derrota da ciência como instrumento moderno de salvação.

O cineasta dinamarquês demonstra asco pela crença inabalável de que progredimos enquanto humanidade. Para ele, todas as promessas de salvação e de progresso são vazias.  A fragilidade da “caverna mágica” onde Justine, Claire e seu filho se abrigam na iminência da colisão expõe que o mundo nos encontra sem piedade, tal como Davi segurando a cabeça de Golias na tela do italiano Caravaggio – uma das pinturas que Justine escolhe nos livros de arte expostos na sala da mansão. Em Melancolia, a Natureza é insuperável. Esse é o veneno que Lars von Trier inocula em seu filme e, embora suas ideias não sejam definitivas ou incontestáveis, ao menos são bastante eficientes em evitar uma percepção morna da existência. Eis aí um paradoxo interessante – a morbidez venenosa de Justine é também um poderoso antídoto contra o abafamento de nossa percepção frente ao mundo e ao mal que ele carrega.

Lars von Trier pode ser pretensioso, arrogante e narcísico. Mas o tom grandiloquente do prólogo de Melancolia, tão arriscado para iniciar um filme, se confirma como ponto de partida de uma obra verdadeiramente arrebatadora. Dessa vez, seu filme não frustra expectativas. A obviedade de uma ou outra metáfora é irrelevante diante da força avassaladora do todo. A melhor e mais poderosa escatologia do vazio que o cinema já viu e verá em muitos anos.

Melancolia (Melancholia) – Dinamarca, 2011
Direção: Lars von Trier
Roteiro: Lars von Trier
Elenco:  Kirsten Dunst, Charlotte Gainsbourg, Kiefer Sutherland, Charlotte Rampling, John Hurt, Stellan Skarsgard, Rudolf Klein-Rogge, Udo Kier
Duração: 130 minutos

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