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Crítica | A Última Tentação de Cristo

por Fernando Campos
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Devido a sua criação religiosa, Martin Scorsese sempre sonhou em realizar um filme sobre Jesus Cristo. Para a tarefa, material fonte é o que não falta, uma vez que a Bíblia é repleta de passagens sobre o filho de Deus. Por isso, não deixa de ser curioso atestar a opção do diretor por adaptar um livro, A Última Tentação de Cristo, de Níkos Kazantzákis, ao invés de recorrer a própria Bíblia. Ademais, o fato torna-se ainda mais inesperado devido a polêmica que a obra de Kazantzákis causou, na época, entre os grupos religiosos, ingressando, inclusive, o Index Librorum Prohibitorum, uma lista de publicações proibidas pela Igreja Católica. Assim como o livro, o filme de Scorsese também causou furor entre os cristãos, uma atitude ingênua, uma vez que, o filme do diretor é, possivelmente, o retrato mais humano sobre Jesus Cristo da história do cinema.

O longa, assim como o livro de Kazantzákis, traz uma releitura sobre os últimos meses de Jesus Cristo (Willem Dafoe) antes da crucificação, mostrando-o, no início, como um carpinteiro que faz as cruzes com as quais os romanos crucificam seus oponentes. Vivendo um terrível conflito interior ele decide ir para o deserto, mas antes pede perdão a Maria Madalena (Barbara Hershey), que se irrita com Jesus, pois não se comporta como uma prostituta e sim como uma mulher que quer sentir um homem ao seu lado. Ao retornar, Jesus reúne doze discípulos à sua volta e transmite seus ensinamentos, no entanto, seu discurso é encarado como algo ameaçador, resultando na prisão e pena de morrer na cruz. Já crucificado, ele é tentado a imaginar como teria sido sua vida se fosse uma pessoa comum.

Scorsese desenvolve sua trama através de um ritmo vagaroso, utilizando o tempo que julga necessário para a passagem dos acontecimentos, construindo cenas com longos diálogos e poucos cortes durante as falas, como a conversa de Cristo com Pôncio Pilatos (em uma ótima participação de David Bowie). Essa escolha do diretor culmina em um filme de ritmo lento, mas necessário para que o público entenda o peso sobre os ombros que Jesus sente sobre a função que lhe foi designada por Deus. Essa estratégia de Scorsese valoriza a visão intimista da obra, ou seja, mais do que mostrar o sacrifício de Cristo, o que o realizador quer aqui é transmitir o que o processo significou para Jesus enquanto homem.

Se outros filmes mostram a grandeza de Jesus enquanto messias, destacando seu sacrifício e ensinamentos, como em A Paixão de Cristo; Scorsese apresenta em A Última Tentação de Cristo a obra definitiva sobre seu lado mortal, com todas as dualidades e temores de qualquer homem. Assim como em outros trabalhos do diretor, o roteiro, escrito por Paul Schrader, propõe um profundo estudo de personagem, destacando Jesus em plena crise existencial e duvidando que um simples homem possa ser filho de um ser celestial; praticamente implorando para ser apenas mais um “mortal”, levando-o, por exemplo, a construir cruzes com o objetivo de fazer seu Pai odiá-lo (uma bela representação de como a via sacra de Jesus começou muito antes de ser julgado). Por isso, há vários momentos tocantes em que Cristo é mostrado solitário, falando sozinho, com destaque para a excelente cena em que ele visualiza seu coração, seu espírito, trazidos por Satanás para tentá-lo.

Devido a essa temática intimista, Scorsese convida-nos a enxergar aquele universo sob os olhos de Cristo, portanto, a fotografia é minimalista, utilizando uma paleta de cores neutras, ressaltando a melancolia do protagonista em meio a tantas dúvidas. O diretor também opta por planos mais abertos, principalmente os planos gerais e planos gerais médios, destacando o isolamento de Jesus e utilizando a paisagem desértica parra destacar seu isolamento. Além disso, a trilha sonora cria uma aura melancólica, repleta de influências árabes, mas também ressalta o lado sagrado de Cristo.

Ainda dentro do estudo de personagem, a narrativa aborda de maneira coesa diversas fases de espírito de Jesus, portanto, vemos o período em que Jesus ensina o amor, exemplificado pelo momento da defesa de uma prostituta; o período em que ele prega a violência, como na expulsão dos mercadores do Templo; e quando ele aceita ser sacrificado. Durante essa trajetória, Jesus visualiza famílias, casais e confraternizações, uma maneira inteligente de Scorsese preparar o terreno para a tentação final que ele sofre de Satanás.

Se essa abordagem se sustenta, é também graças a interpretação estupenda de Willem Dafoe, transmitindo o turbilhão de sentimentos sofridos pelo personagem durante a projeção com muita sutileza. O ator é preciso em não tornar Jesus nem muito sagrado e nem muito humano, sendo perfeito em destacar a dualidade de seu personagem. Já Harvey Keitel parece deslocado aqui, construindo um Judas artificial, com sotaque estranho e que não lembra em nada uma pessoa daquela época.

Até que chegamos ao excepcional clímax da obra, a última tentação imposta por Satanás, mostrando para Jesus como seria sua vida caso escolhesse ser um homem qualquer, resultando em uma das cenas mais impactantes dentro de toda a filmografia de Scorsese, quando testemunhamos Jesus, no leito de sua morte, suplicando desesperadamente para Deus perdoá-lo e aceitá-lo como filho novamente, envolto pelo preto e vermelho dentro da paleta da cena, ressaltando o enorme sentimento de culpa e isolamento de Cristo por ter cedido à carne. Após isso tudo, quando o protagonista percebe que tudo não passava de uma ilusão e está de volta na cruz, sentimos o quanto o seu sacrifício significou para seu espírito, sendo o momento em que ele finalmente entendeu por completo o papel dele no plano de Deus, dizendo com alívio “está consumado”.

Visto a proposta da obra, é curioso atestar o quão absurdas são as críticas de grupos religiosos para com o filme, uma vez que, mesmo que seja chocante assistir Jesus casando, por exemplo, o longa mostra com clareza como ele abriu mão de viver uma vida terrena para tornar-se algo maior, mesmo com todas as dúvidas, medos e tentações para agradar seu lado carnal. Como alguém pode se ofender com isso? Se Scorsese peca é por não trazer um Jesus idealizado que as pessoas gostariam de ver. Aliás, talvez seja justamente isso que incomode, atestar que o “salvador da humanidade” pode ser tão humano quanto nós.

A Última Tentação de Cristo (The Last Temptation of Christ) — EUA, 1988
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Paul Schrader (baseado na obra de Níkos Kazantzákis)
Elenco: Willem Dafoe, Harvey Keitel, Verna Bloom, Barbara Hershey, David Bowie, Irvin Kershner, John Lurie, Harry Dean Stanton, Gary Basaraba, Victor Argo, Michael Been, Paul Herman, Paul Greco, Andre Gregory, Tomas Arana, Barry Miller, Leo Burmester, Steve Shill
Duração: 164 min

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