Escrito por Kazuo Koike e desenhado por Goseki Kojima, Lobo Solitário é um dos mais icônicos títulos dos mangás de todos os tempos. Reverenciado por sua excelência de narrativa em tema e arte, o quadrinho tem influência em centenas de produções do gênero, inclusive no Ocidente, tanto nos quadrinhos western quanto em filmes ou outras HQs que aludem à mesma dinâmica, a exemplo de Estrada Para Perdição. Dentre os artistas ocidentais que mais amplamente citaram a obra de Koike e Kojima ao longo dos anos está Frank Miller, que não só é um apaixonado pela cultura japonesa, colocando-a como ingredientes em quadrinhos do Demolidor e Wolverine, mas também um reinventor desses ambientes culturais (para o mal ou para o bem), se inspirando em Lobo Solitário para criar as séries como Sin City e a mais óbvia, Ronin.
Nesta saga, acompanhamos Itto Ogami, que no passado exerceu uma das funções mais nobres do xogunato Tokugawa, a de Executor. A família nomeada a este cargo carregava o brasão do Clã Tokugawa e selecionava uma pessoa para ser o grande representante dos rituais. Este indivíduo era sempre um exímio espadachim. Ele auxiliava no cumprimento do seppuku — o ritual suicida japonês majoritariamente reservado à classe guerreira, mas não unicamente — dos daimyos, os senhores de terra. No capítulo final deste primeiro volume, o autor utiliza de uma contextualização do passado de Ogami para nos situar exatamente o período da queda de sua família, a Era Meireki (1655 – 1658). Logo, podemos estabelecer as andanças do Lobo Solitário a partir desse período, que curiosamente coincide com um tremendo fato histórico, o Grande Incêndio de Edo, ocorrido em 1657, e que destruiu entre 60 e 70% da cidade (na época, capital do xogunato, hoje, cidade de Tóquio) e matou cerca de 100 mil pessoas.
Este primeiro volume da saga possui nove capítulos, a saber, 1) Alugo minha espada, alugo meu filho; 2) Apenas um pai pelo filho, um filho pelo pai; 3) De norte a sul, de oeste a leste; 4) Travessia do carrinho de bebê pelo Rio da Morte; 5) Suiou-ryu Zanbatou; 6) À espera da chuva de outono; 7) Formação de Hanchimon Tonkou; 8) Asas para os pássaros, presas para as feras e 9) O caminho do assassino. Cada um dos capítulos funciona como uma história “separada”, ou um pequeno conto das andanças do Lobo e seu filhote Daigoro.
É apenas na conclusão do último capítulo que o leitor conseguirá fazer um apanhado geral dos acontecimentos e colocar em perspectiva a vida do protagonista. Isso porque Kazuo Koike não é o tipo de mangaká que se preocupa em dar respostas imediatas para tudo. Na verdade, sua única preocupação aqui é nos fazer conhecer as habilidades do Lobo Solitário, sua relação com o filho Daigoro e o tipo de missões de assassinato que ele aceita. Como já citado, no final do último capítulo nós temos a motivação do por quê Ogami entrou para o Caminho do Assassino, e tudo se torna ainda mais frio, imenso e culturalmente chocante para o público. Nós passamos o volume inteiro lidando com as escolhas morais e éticas do personagem, mas chegamos ao final com um choque que nos dá a impressão de o estar conhecendo naquele momento.
E a habilidade textual de Koike não para por aí. Além de não seguir uma estrutura linear e fazer de cada conto um verdadeiro evento, o autor consegue criar situações onde a mesma estrutura narrativa jamais anjoa o leitor. Falando de maneira simplista, vemos repetir ao longo do volume a chegada de Ogami a um lugar onde ele utilizará alguma técnica para cumprir uma missão, tendo como um dos focos de abordagem A Arte da Guerra, de Sun Tzu. O texto, no entanto, faz com que esta dinâmica seja sempre uma grande novidade, ou pelo tipo de inimigo a ser enfrentado ou pelos caminhos utilizados pelo Lobo para cumprir a sua missão. Em um conto extremamente angustiante como o da Estação Termal de Goumori, notamos a capacidade de criação de uma atmosfera que mescla até o terror psicológico, valendo-se, quadro a quadro, da soberba arte de Goseki Kojima, um desenhista extremamente habilidoso em criar ambientações ágeis e completas.
SPOILERS!
Quando lemos uma obra como Lobo Solitário, experimentamos o prazer de um enredo bem contado pelas duas partes da parceria de artistas. O roteiro é direto, fala só o necessário e sabe guardar informações para o momento propício, não subestimando a inteligência do leitor e se achando na obrigação de criar uma base didática para que a história seja compreendida. E a arte é inteligente, fazendo a passagem pelas cenas a partir da constituição do espaço, da posição dos personagens, do congelamento de movimentos, do foco dramático em algo ou alguém no meio do processo e, enfim, em uma conclusão visualmente econômica mas sempre acertada. O único momento de estranheza (mais do roteiro do que da arte, na verdade) que temos aqui é no capítulo Formação de Hanchimon Tonkou, onde o Lobo Solitário precisa enfrentar um time de mulheres habilidosas com a espada, todas empenhadas em silenciá-lo, para que a contenda no clã não fosse espalhada (e aqui vale uma cínica observação: era preciso ser muito macho para aceitar uma missão de assassinato no período, porque era sabido que uma parte considerável dos que contratavam o serviço de assassinos, voltariam para matar o contratado, a fim de impedir que falasse sobre o que fez).
Até o penúltimo momento de Formação de Hanchimon Tonkou as coisas funcionam perfeitamente bem. Mas no ponto em que o estrito caminho de madeira à beira da montanha despenca, tudo parece impossível demais, exigindo muito da nossa suspensão da descrença para acreditar que a “estratégia” de Ogami tenha sido aquela, ainda mais porque ele não tinha como garantir que a espada não despencaria junto com as madeiras da ponte. Este é o único momento em todo o volume em que há algo para se desgostar ou que tenha uma falha de construção, ao menos na exposição final dos acontecimentos.
O Caminho do Assassino é a estreia brilhante de um personagem ao lado de seu filho, numa daquelas histórias das quais é impossível desgrudar os olhos das páginas até que se chegue ao final. E em meio a mortes escabrosas, ainda sobra espaço visual e literal de ternura, uma pesquisa histórica muitíssimo bem feita e utilizada a favor da trama (até as mudanças são realizadas com classe) e inesperados momentos de fofura e humor vindos através do personagem de Daigoro, mesmo quando o momento não indica algo bem humorado. A passagem em que o pequeno faz xixi em um samurai é uma das minhas favoritas. Vejam esse diálogo:
__ Quer dizer que se recusa a pedir perdão, depois de seu filho cometer o abuso de sujar a fronte de um samurai?
__ De jeito nenhum… Abuso é um samurai fazer tamanho alarde por causa do xixi de uma criança. Não vejo a menor necessidade de pedir perdão.
Lobo Solitário é um mangá que já nasceu um clássico. Uma leitura prazerosa, com um texto inteligente, complexo e uma arte detalhista e perfeitamente alinhada a uma base de marca visual refinada que só veríamos dentre os melhores exemplares em outras indústrias da 9ª Arte pelo mundo.
Lobo Solitário – Vol.1: O Caminho do Assassino (Japão — série completa publicada entre setembro de 1970 e abril de 1976)
No Brasil: Lobo Solitário – Edição 1 (Panini, dezembro, 2016)
Roteiro: Kazuo Koike
Arte: Goseki Kojima
285 páginas