Tudo à Venda (1969) é um filme estranho e engenhoso. Segue a linha daquelas obras cinematográficas que retratam as suas próprias condições de produção, tematizando as agruras das filmagens, os problemas de bastidores e as aporias criativas; esse é o caso de películas como Cantando na Chuva (Gene Kelly e Stanley Donen, 1952), Oito e Meio (Fellini, 1963), A Noite Americana (Truffaut, 1973) e O Desprezo (Godard, 1973), para citar exemplos clássicos. A metalinguagem é uma tendência do cinema moderno, propondo-se a fazer uma espécie de streap-tease do discurso que desnude as estruturas técnicas da realização, e o filme de Andrzej Wajda pode ser visto como um exemplar sui generis, decerto herdeiro de uma tradição, mas também com traços de singularidade.
Narrativas metalinguísticas possuem tipicamente a estrutura do mise en abyme, isto é, apresentam instâncias que se espelham e retroalimentam em vários níveis. Trata-se de filmes que emulam a própria feitura de filmes; atores fazendo o papel de atores atuando; câmeras que filmam câmeras filmando; roteiristas criando argumentos segundo argumentos já criados… Enfim, constituem como que quebra-cabeças, jogos de espelho que podem inclusive levar o espectador à confusão de um labirinto narrativo que não se encerra.
Ocorre que em Tudo à Venda esse enredamento é levado ainda mais longe, às últimas consequências, pois além da relação entre produção real da obra fílmica e filme recriado enquanto instância ficcional, há igualmente a alusão a um fato da vida de seu diretor: Andrzej Wajda perdeu em 1967 o seu amigo e ator Zbigniew Cybulski, e daí partiu a ideia para a fita de dois anos depois. Essa é, aliás, a primeira das tantas correspondências múltiplas que marcam o filme: elemento oriundo de âmbito não artístico, que se transforma em mote para a ficção e é depois aproveitado organicamente para a construção da trama.
A origem de todo o nó da história é, em verdade, uma ausência. Por esse motivo, Tudo à Venda lembra a mais famosa peça do dramaturgo irlandês Samuel Beckett, Esperando Godot, na qual todos os eventos (ou melhor, a inexistência total de eventos!) advêm de uma espera absurda e interminável por um sujeito que nunca aparece. No filme de Wajda, a equipe de produção aguarda a chegada de um ator inominado e sumido, conhecido por suas aventuras amorosas e desrespeito às regras rígidas da rotina. O diretor, Andrzej, irrita-se com a demora do intérprete, e resolve viver, ele mesmo, as cenas que dependeriam do protagonista. O ator misterioso, recôndito, nem parece ser uma pessoa, mas uma força da natureza, gênio indomável, fugidio e inacessível.
Em termos de espelhamento, a relação entre vida real, produção concreta do filme e emulação de produção na fabulação ficcional, esta obra constitui uma verdadeira série de bonecas russas, com coincidências que vão se projetando ad infinitum. Vejamos: são os mesmos na realidade e na ficção os nomes dos diretores (Andrzej), os de três atores (Beata Tyszkiewicz interpreta “Beata”; Elzbieta Czyzewska faz o papel de “Elzbieta”; e adivinhem o nome do personagem que Daniel Olbrychski encarna…), bem como os do filme e do filme-dentro-do-filme (Tudo à Venda); correspondem as situações das duas mulheres (Beata e Elzbieta) em relação ao ator desaparecido: ambas estão apaixonadas por ele, na obra que está sendo filmada e nos bastidores dela; o personagem misterioso some nos dois níveis da narrativa. Tamanha é a conexão entre essas diversas instâncias que Wajda se sentiu obrigado a ressaltar, no letreiro inicial, que “os papéis de Beata e Elzbieta não guardam semelhança com a vida privada das atrizes”.
Entretanto, a lógica de matrioska que rege Tudo à Venda não é o único ponto de relevo desse filme curioso. Ele tangencia também um aspecto constante na filmografia de Wajda: o comentário político, a abertura de espaço para que sobrevenham as feridas históricas. Quando se descobre que o protagonista desvanecido morreu num acidente de trem (evento que encontra correlatos no filme-dentro-do-filme e no falecimento do homem real Zbigniew Cybulski), Elzbieta, sua esposa, e Beata, sua amante e casada com o diretor Andrzej, enchem-se de luto. O último vai de carro a um museu onde se apresentam quadros que mostram os horrores do nazismo em território polonês. Em momentos posteriores, a equipe técnica da produção fictícia do filme procura saber se algumas informações a respeito da participação na Segunda Guerra Mundial do ator morto eram verídicas ou falsas. Estes, e aqueles dentro do museu, são uns dos poucos momentos mais contemplativos em Tudo à Venda, cuja montagem é, de resto, quase sempre absurdamente acelerada.
Outra questão interessante é a discussão moral levantada por Andrzej Wajda a respeito da indústria cinematográfica. Quando o protagonista morre, o diretor Andrzej é convencido pelo roteirista e outros membros da equipe a fazer um filme sobre o defunto- “um filme sobre ele, sem ele”. Percebe-se facilmente o oportunismo mercadológico de tal empreitada, o fato de que se aproveita do incidente para o sucesso na mídia e nos festivais. Mas ora, Wajda também fez um filme em homenagem a um artista morto; o que diferencia ambos os casos é o respeito reverente num, o ultraje noutro.
Neste texto, já me referi a Tudo à Venda como uma produção “estranha” e “curiosa”. Os adjetivos têm lá sua ambiguidade, parecem sugerir uma indefinição quanto à qualidade da película. E acho que é justamente este o caso- a metalinguagem é trabalhada de modo radical; ademais, há momentos de grande primor, principalmente no primeiro terço do filme, quando as andanças desbaratadas e disparatadas de Elzbieta encontram uma forma fílmica onírica e por vezes um nonsense divertido; e no entanto, a conta não fecha totalmente. Comparece algo de inaceitavelmente irregular nessa obra, seja a frouxidão às vezes excessiva da verossimilhança, seja a disfunção de algumas passagens, ou ainda a ausência de uma relação mais orgânica entre os vários departamentos temáticos apresentados. Parece que a trama não se decide quanto a qual caminho tomar, qual foco imprimir, quais discussões ressaltar.
O desfecho do filme é um bando de cavalos em correria. Se eles aludem simbolicamente à natureza selvagem do protagonista ausente, pode-se também usá-los a contrapelo para sintetizar as limitações dessa obra ambígua: falta-lhe rédias, ela às vezes solta-se demais, incorre em liberdades poéticas nem sempre felizes, às vezes problemáticas; não raro, todavia, relincha com majestade, mostrando as crinas belíssimas do talentoso cineasta que a concebe.
Tudo à Venda (Wszystko na sprzedaż)- Polônia, 1969.
Direção: Andrzej Wajda
Roteiro: Andrzej Wajda
Elenco: Beata Tyszkiewicz, Elzbieta Czyzewska, Andrzej Lapicki, Daniel Olbrychski, Witold Holtz, Malgorzata Potocka, Bogumil Kobiela, Elzbieta Kepinska
Duração: 94 min. (versão da retrospectiva Andrej Wajda)