É interessante como a Pixar é vista e tratada pela maioria das pessoas. Sempre se espera do estúdio, agora completamente parte do grupo Disney, filmes irretocáveis, verdadeiras obras-primas. A pergunta que se faz é: seria justo comparar uma obra de uma empresa com outra dessa mesma empresa mesmo que os filmes não tenham nenhuma relação entre si?
Julgar uma continuação pelo patamar estabelecido pelo filme original é algo comum e perfeitamente justo. Assim, é razoável julgar Harry Potter 2 em relação a Harry Potter 1 e assim por diante. No entanto, porque seria razoável julgar Lanterna Verde em relação a Harry Potter? Ora, ambos são da mesma produtora (Warner), mas são filmes completamente diferentes, sem relação. Raramente vemos esse tipo de comparação.
Mas, quando se trata da Pixar, esse tipo de julgamento é sempre feito. Quantas vezes já não ouvimos alguém dizer que Monstros S.A. é bom, mas que Up – Altas Aventuras, é muito melhor ou algo na mesma linha? Não é que se não deva fazer isso, mas apenas que, no caso da Pixar, essas comparações são constantes, incessantes e, em última análise, talvez injustas.
No entanto, por outro lado, a Pixar chegou a um patamar de excelência tão elevado no que se refere a desenhos gerados em computação gráfica, que essa comparação é até uma espécie de elogio. Reiterados sucessos críticos e de bilheteria, começando com Toy Story, passando por Os Incríveis, Wall-E e acabando em Carros (não pretendo entrar na discussão se Carros 2 é ou não de qualidade) resultaram em uma plateia exigente . E isso é bom, não é mesmo? Excelente, na verdade. É um dos poucos momentos em que o público quer mais e não menos de um estúdio.
Acontece que é aí que “mora o perigo”. Basicamente, a Pixar tem como inimiga e maior concorrente ela própria. Quando Carros 2 foi produzido, a continuação do filme até então reputado como o “pior” da empresa, o estúdio foi acusado de baixar o nível, de se bandear para o mercantilismo e por aí vai. Quando Valente iniciou sua conturbada produção, que sofreu adiamentos, mudanças de roteiro e título e, mais notadamente, troca de diretores, as acusações não foram muito diferentes: “lá vai a Pixar fazer uma princesa que nem a Disney” e “ih, que história mais lugar-comum, totalmente diferente do padrão Pixar”. Na verdade, apenas notando a quantidade de diretores (nenhum deles um nome estabelecido na Pixar) e de roteiristas, já é possível reparar que as críticas iniciais talvez não estivessem assim tão erradas.
Apesar de ficar dividido entre comparar ou não filmes sem relação entre si, a inigualável qualidade dos roteiros produzidos pela Pixar acaba forçando essa prática. É algo efetivamente salutar na indústria e é por isso que houve tanta revolta com Carros 2. Exigir mais não é algo ruim nos dias de hoje em que mais explosões e menos história é visto como o ideal por muitos, infelizmente. Dito isso, Valente poderia sim ter sido algo bem melhor do que acabou se tornando.
O que vemos na tela é de uma qualidade técnica invejável e que nenhum estúdio de animação alcançou até hoje. Valente talvez seja o maior exemplo do esmero e polimento computacional da Pixar, o ápice da técnica de manipulação dos pixels. Para ficar no que todo mundo mencionava à época, vejam por exemplo os cabelos da Princesa Mérida (voz de Kelly McDonald, no original). As madeixas encaracoladas cor de fogo são, por si só, um júbilo cinematográfico que fará qualquer um cair de joelhos com lágrimas nos olhos. E não, não estou exagerando.
Acontece que a qualidade gráfica não para por aí. Reparem nas texturas dos tecidos brilhantes usados nos vestidos de Mérida e de sua mãe Elinor (Emma Thompson). Notem os detalhes dos padrões dos panos mais abrutalhados dos kilts. Percebam a pelagem da crina do cavalo da princesa, as nuances das cenas passadas à noite ou ao entardecer, o movimento de cada lâmina de grama, a textura de cada rocha.
Bastava uma história também “padrão Pixar” para elevar Valente ao panteão das obras-primas da empresa. Mas não é exatamente isso que vemos.
Mérida é uma princesa escocesa extremamente rebelde que quer viver sua própria vida, sem interferência dos ditames do que sua condição como realeza e mulher exige. Ela é uma exímia escaladora e uma arqueira sem paralelo. Adora deixar seus cabelos soltos em claro sinal de sua rebeldia. Seu pai, o Rei Fergus (Billy Connolly), vê em Mérida um reflexo dele mesmo, mas Elinor quase tem síncopes nervosas quando nota sua filha agindo como se fosse um menino, com espadas e arcos nas mãos sujas. Quando Elinor força Fergus a criar um torneio para determinar quem será o noivo de Mérida, a princesa deixa sua rebeldia tomar conta e a história literalmente começa.
O interessante da breve sinopse acima é que ela é tudo o que a campanha publicitária da Pixar deixou entrever. O marketing desse filme não fez como os demais, mastigando o filme para a plateia. Tudo o que vemos nos trailers fica circunscrito aos elementos acima, mais nada. No entanto, a narrativa vai muito além do descrito que, na verdade, funciona mesmo como um prólogo à ação que se segue.
Gostaria de poder dizer que o que vem depois é ainda melhor do que essa primeira parte, mas não é. A surpresa ou a virada na história, apesar de fazer uso de magia, não é mágica. É quase lugar-comum e, de certa maneira, já feito de forma quase idêntica em Irmão Urso, ironicamente da Disney. Aliás, neste outro desenho, o acontecimento mágico é bem mais orgânico em relação à história do que o que temos em Valente.
Assim, o que assistimos, a partir da segunda metade do filme, é o esquecimento de todo o brilhante preparativo que veio antes para a obra se tornar algo mais padronizado, daquele estilo que já vimos algumas dezenas de vezes. O esmero técnico continua, claro, mas o roteiro sofre uma sensível queda, perdendo em humor, perspicácia e desenvolvimento de personagens.
E o 3D, apesar de suficientemente inserido na trama, sem parecer forçado, não agrega muito ao novo desenho, a não ser talvez em um close-up extremo dos cabelos de Mérida. É um breve momento apenas, que não justifica de verdade o valor mais alto do ingresso.
De toda maneira, Valente, apesar de ser, no final das contas, uma obra menor da Pixar ou – usando a comparação inevitável – um ótimo filme se fosse da Disney ou da Dreamworks, merece aplausos. Além da qualidade da computação gráfica, Valente nos lega outra coisa: uma princesa diferente, com grande personalidade, que não tem sua existência justificada pela contrapartida de um príncipe. Mérida é Mérida sozinha, por seus próprios méritos. É uma visão refrescante de um tipo de personagem muito batido.
Valente (Brave, EUA – 2012)
Direção: Mark Andrews, Brenda Chapman, Steve Purcell
Roteiro: Mark Andrews, Steve Purcell, Brenda Chapman, Irene Mecchi
Elenco (vozes no original): Kelly McDonald, Billy Connolly, Emma Thompson, Julie Walters, Robbie Coltrane, Kevin McKidd, Craig Ferguson, Sally Kinghorn
Duração: 100 min.