Feito para ser uma paródia pervertida de animações da Disney e/ou Pixar, além de outras de pegada “pura” e “bonitinha” que existem por aí, Festa da Salsicha, ainda bem, consegue ser mais do que apenas isso. Afinal, seria muito fácil e até bastante comum uma produção pegar pesado apenas por pegar pesado para desancar obras para toda a família – afinal, temos que lembrar que a franquia Shrek começou assim até se perder – e Seth Rogen e companhia me parecerem bem mais interessados em usar a paródia apenas como pontapé inicial para algo bem mais ambicioso e interessante, que consegue não exatamente desafiar o espectador, pois não se trata de uma animação particularmente densa ou complexa, mas sim surpreendê-lo com um arrojo raro de se ver por aí mesmo em obras construídas para serem para maiores e que poderia muito facilmente vir de mentes como as de Trey Parker e Matt Stone.
Na história, os alimentos e também alguns (mas não todos) objetos de uso pessoal têm vida como os brinquedos têm vida em Toy Story. Mas, diferente da animação que fez da Pixar o que ela é hoje, os humanos não as veem se movimentando porque elas param de se movimentar quando eles estão olhando, mas sim porque existe uma “barreira de percepção” que permite a coexistência das comidas e objetos sendo como eles são sem que os humanos captem que eles, na verdade, estão vivos. Não há uma lógica muito boa para a premissa, assim como não há lógica para quando essa barreira é quebrada quando sais de banho são injetados como heroína em humanos, mas, às vezes, que se dane a lógica, não é mesmo? O que realmente importa é que as comidas e objetos antropomorfizados de um supermercado vivem sob a crença que os humanos são deuses que, quando os compram, os levam para o Grande Além, para o Paraíso em que eles serão bem tratados para sempre e não para a cozinha e outros ambientes domésticos em que eles, na verdade, serão cortados em pedaços, descascados, triturados, fritos, fervidos, cozidos e, claro, mastigados.
Toda manhã, os produtos do supermercado recebem os humanos com uma canção que os celebra e o maior desejo de todos ali é tornar-se “o escolhido”, o que pontua a devoção e a cegueira religiosas – dois aspectos que não necessariamente andam de mãos dadas, mas que frequentemente estão juntas – e que são os primeiros elementos que elevam Festa da Salsicha para além de uma mera paródia de animações fofas. Vemos, aqui, a razão ceder espaço para o fervor religioso, em que as pessoas, digo, os alimentos, confrontados com provas cabais de que sua crença não passa de uma invenção, recusam-se a aceitá-las, agarrando-se a dogmas que eles sequer sabem de onde vêm. Como se isso não bastasse, dois dos mais importantes coadjuvantes do longa – Kareem Abdul-Lavash, um pão-armênio (ou lavash) muçulmano vivido por David Krumholtz e Sammy Bagel Jr., um bagel judeu (Edward Norton) – canalizam décadas de conflitos no Oriente Médio que são transplantados para o filme por meio de demonstrações de intolerância, preconceito e, claro, divisão física de território, no caso de prateleira.
Mas, envelopando esse foco e essa crítica a uma religiosidade danosa, incapaz de compreender e seguir aquilo que seus dogmas pregam, existe a abordagem sexualmente explícita – ou o máximo possível considerando que estamos falando de alimentos – que já começa nos segundos iniciais da projeção com a salsicha Frank (Seth Rogen) “tocando só a ponta” no pão de cachorro quente Brenda Bunson (Kristen Wiig), como um prelúdio para ele “entrar completamente” nela que, por sua vezes, mal pode esperar para “abrir-se” para ele e, mais ainda, como o gostinho para a caótica sequência final que fará qualquer espectador olhar para seus alimentos de maneira no mínimo diferente. Em outras palavras, é sexo, religião e comentários geopolíticos em uma fábula transgressora que existe muito mais para agredir no bom sentido o espectador do que para exatamente arrancar risadas. Diria até que o humor, que é esperto, constante e inteligente, muito mais leva à risadas de constrangimento pela realização do que está sendo dito, do que pelo puro humor “idiotizante” que vemos por aí mais facilmente.
Até mesmo o design dos personagens é estranho, por vezes parecendo fruto de mentes que não pensaram muito no que queriam colocar nas telas. Mas a palavra chave aqui é “parecendo”, pois tenho para mim que tudo foi quase que cientificamente criado para causar estranheza e até ojeriza mesmo. Afinal, tirando as salsichas Frank e Carl (esta uma salsicha deformada vivida por Jonah Hill e que tem toda uma trajetória narrativa fora do supermercado), que ganham bracinhos e perninhas que acabam em luvas brancas e sapatos, um tropo básico da antropomorfização de animações, grande parte do restante é uma bizarra coleção de criações feias feitas para tirar o espectador da zona de conforto. Peguem Brenda, por exemplo. Se a retirarmos do contexto do filme, dificilmente perceberemos que ela é um pão de cachorro-quente. Ela está mais para uma massa disforme, estranha e propositalmente sexualizada com pernas, braços, olhos e uma boca vertical do que para um pão. Kareem também é uma criação que é até difícil perceber o que exatamente ele é na verdade, com Sammy sendo uma rosquinha cujo “buraco” é sua boca e, portanto, nem sempre é um buraco. E, como se isso não bastasse, temos o grande vilão Douche (Nick Kroll) que é, com esforço, nada menos do que uma ducha sanitária que quer mais do que qualquer outra coisa acabar com Frank porque a salsicha o impediu de chegar ao Grande Além. Ou seja, tudo é feito para estapear o espectador, valendo especial destaque para a brilhante transformação do falecido físico teórico Stephen Hawking em uma goma de mascar toda torta que ainda faz as vezes de T-1000, em uma das mais desrespeitosas, babacas e escrotas antropomorfizações que já vi na vida e, por isso mesmo, uma das melhores (voz de Scott Diggs Underwood).
O que depõe contra Festa da Salsicha é, em essência, as repetições do roteiro. Não basta introduzir o tema do fanatismo religioso e deixá-lo como pano de fundo; há a necessidade de levantar o assunto a cada 10 minutos. Não é suficiente falar de sexo algumas vezes; é essencial que piadas sexualmente carregadas sejam onipresentes. Não basta apresentar um grupo coeso de personagens; é importante introduzir novos personagens a cada subida de degrau narrativo. E, como sabemos, tudo em excesso cansa, e cansa especialmente porque, no caso, o excesso vem da repetição, vem da mesma coisa sendo abordada de maneiras levemente diferentes aqui e ali. Não fosse o escracho da premissa, o ritmo rápido da história e a divisão da narrativa entre a busca pela verdade empreendida por Frank no supermercado e o horror da realização da verdade do lado de fora por Carl, chegaria a dizer que o material que a quadra de roteiristas tinha não era suficiente para mais do que um curta metragem, talvez, com esforço, um média metragem.
Mas Festa da Salsicha acerta bem mais do que erra por fazer esforço para ser um “diferentão” legítimo, que não se contenta com a paródia pura e simples e vai além, traçando uma história que chega até a ser ambiciosa em razão de suas críticas socais e política e por não tentar, em momento algum, fazer algo “bonitinho”. O humor na base do choque é bem dosado e há diversos momentos realmente inspirados que, mesmo não conseguindo criar uma mitologia particularmente consistente e que carrega boa lógica interna, têm força suficiente na base de esquete para segurar-se e manter-se fresco por toda a minutagem. O que, no final das contas, realmente importa é se, depois de assistir esse filme, o espectador ficou com vontade ou nojo de enfiar a salsicha no pão de cachorro-quente…
Festa da Salsicha (Sausage Party, EUA – 2016)
Direção: Greg Tiernan, Conrad Vernon
Roteiro: Kyle Hunter, Ariel Shaffir, Seth Rogen, Evan Goldberg
Elenco: Seth Rogen, Kristen Wiig, Jonah Hill, Edward Norton, David Krumholtz, Craig Robinson, Michael Cera, Paul Rudd, Salma Hayek, Bill Hader, James Franco, Danny McBride, Scott Diggs Underwood, Nick Kroll
Duração: 89 min.