Segundo o Censo IBGE de 2010, 1.28 milhão de pessoas moram nas favelas de São Paulo. Desse total, um terço é originário de outros Estados. Parece um problema atual, mas nos anos 50, a mineira Carolina Maria de Jesus, moradora da favela do Canindé, já se enquadraria nessa estatística. Autora do comovente relato Quarto de despejo: diário de uma favelada, Carolina descreveu em detalhes a vida cotidiana de catadora de papel, mãe solteira, moradora de favela, migrante — enfim, de um grupo de pessoas que está longe de ser “minoria”, mas que, quase 70 anos depois, ainda vive em condições precárias e bem longe dos holofotes.
Carolina Maria de Jesus foi “descoberta” por um jornalista que, ao realizar uma reportagem sobre a favela, conheceu a autora e seus escritos e foi o responsável por colocá-la em contato com um editor. Até então, Carolina era uma catadora de papel que adorava ler, e que também escrevia para tornar a vida mais fácil. Os registros que fazia, permeados de críticas, mas também de lirismo, ganharam o mundo e permitiram a realização do seu maior sonho: deixar a favela. Mas não se engane: Carolina faleceu em 1977, pobre e esquecida pela mídia.
Quarto de despejo trouxe à tona a vida de Carolina, mas também a vida de outras pessoas, tanto aquelas que apareceram em seus relatos como aquelas que, ainda que permaneçam invisíveis à maioria, seguem travando batalhas parecidas no dia-a-dia. Seu livro tem como principal personagem não a autora, como era de se esperar, mas a fome. A presença constante, até mesmo irritante do tema, confere ao texto um aspecto bastante dramático, especialmente ao se levar em consideração a veracidade dos escritos. Dia após dia, Carolina sai de casa com um único objetivo: conseguir comida para si e para os filhos — tarefa por vezes impossível. Não há expectativas maiores. Não há planos a longo prazo. Só a presença constante da fome e a guerra contra ela.
Os outros conflitos presentes no enredo — indisciplina dos filhos, desentendimentos com outros moradores, pretendentes… — tornam-se secundários diante da Fome. Ela é o maior inimigo, ela deve ser combatida sem cessar, sem trégua, e só então haverá alguma vida além disso. Essa forma de existência, pautada apenas na sobrevivência, é desumanizadora na medida em que iguala humanos e animais — ou coloca aqueles até mesmo abaixo destes: Carolina chega a dizer que inveja os bichos. Também consegue restos para os filhos que não seriam comidos por humanos dizendo aos doadores que são “para o cachorro”.
A condição de mulher e mãe solteira nessa sociedade desumanizada também se impõe no livro. Mesmo num ambiente em que todos sofrem, as mulheres ainda assim se encontram um patamar abaixo — tendo de lidar também com o assédio, o abuso, o estupro, a violência doméstica, o julgamento alheio desde muito novas. Carolina relata seu “desgosto por ser mulher”, e diante das disputas, rivalidades e julgamentos entre as mulheres da favela (incluindo a autora), ela afirma que gostaria de ter nascido homem e que isso tornaria sua vida mais fácil. Os filhos, por sua vez, são o que move Carolina. Ela pensa mesmo em cometer suicídio, mas se sente aterrorizada com a perspectiva de morrer e deixar as crianças sozinhas no mundo. E é por elas que tudo faz e tudo suporta.
A linguagem de Quarto de despejo merece destaque. Repleta de imagens líricas e metáforas associadas a muitos erros de ortografia, Carolina é a prova de que escrever bem não significa não cometer desvios gramaticais. Os editores optaram por deixar a linguagem o mais fiel possível ao original, e acertaram — não seria verossímil uma correção camoniana para uma escritora que não concluiu o Ensino Fundamental, e a força do texto de Quarto de despejo está justamente em sua realidade. A precária formação de Carolina não impede que ela crie imagens belas e fortes, além de alguns clichês — provavelmente provenientes de suas leituras. Carolina dizia que escrevia para espantar a tristeza, e sua linguagem reflete esse tom — ora revoltado, inconformado, ora profundamente triste. Conforme passagem da obra, suas palavras “são de aço”.
E é com palavras de aço que Carolina descreve a favela, os políticos, o povo. Bastante crítica, a autora vê a favela como o “quarto de despejo” da cidade — daí o título. Sua descrição causa até certo incômodo para um leitor do século XXI, creio — uma vez que hoje, ao lado da pobreza e da violência, também se vê a favela com outros olhos, que incluem as expressões culturais da periferia, a defesa desse espaço pelos próprios moradores, a identidade periférica. Para Carolina, não há vantagem em viver na favela. Não há solidariedade, comunidade. Só a miséria e o sonho de criar seus filhos longe desse ambiente tóxico.
Suas palavras de aço também são direcionadas aos políticos — que só aparecem na época das eleições, são interesseiros, oportunistas e corruptos, além de assistencialistas. Carolina se mostra bastante sensata em sua compreensão dos mecanismos sociais, nesse sentido — por exemplo, critica os governantes, mas também o povo que não cobra, não reage, não se une. E ainda pensa se aproveitar. As religiões também não são poupadas, especialmente no que tange à resignação com o sofrimento pregada pelo cristianismo — e que, para Carolina, não é uma opção.
Quarto de despejo é um livro, infelizmente, muito atual. As situações e personagens sofreram alterações, mas continuam acontecendo 70 anos depois. A narrativa cotidiana e mesmo repetitiva pode não cativar — pelo contrário, incomoda. Assim como incomoda levar um “tapa na cara” não com uma reportagem ou novela sobre a favela, mas com uma obra que veio de dentro, de uma moradora de fato, de alguém que “vive” a favela, não apenas “fala sobre” ela. Mas é um incômodo necessário. Em tempos de jovens-com-vinte-e-poucos-anos-deprimidos-e-doentes-por-causa-da-faculdade, não deixa de ser um choque lembrar assim tão claramente que muita gente não tem planos para o futuro, mas vive apenas para sobreviver até o fim do dia. Reconhecer os próprios privilégios pode ser um exercício desconcertante, mas é o mínimo — o mínimo, repito — que podemos fazer.
Por outro lado, o texto de Carolina é uma prova de que podemos ter voz, e que essa voz pode chegar mais longe do que nós mesmos. Uma mulher, favelada, negra, mãe solteira produziu uma obra histórica e admirável, e o que podemos esperar é que isso sirva de inspiração a tantas outras pessoas que ainda vivem nas margens do nosso país afora.
Quarto de despejo – Brasil, 1960 (10ªed. 2015)
Autora: Carolina Maria de Jesus
Publicação original: Editora Ática
199 páginas