Quatro personagens estão em uma ilha. Karin (Harriet Andersson), seu esposo Martin (Max von Sydow), seu pai David (Gunnar Björnstrand) e seu irmão Minus (Lars Passgård, em seu primeiro filme). Eles comemoram o retorno da jovem após ser liberada de um tratamento no hospital — ela sofre de uma desordem mental normalmente identificada como esquizofrenia, mas existem outros comportamentos psicológicos desordenados que podemos ler a partir dela — e também o fato de David retornar da Suíça, após isolar-se para escrever seu novo livro.
O título do filme faz referência a uma passagem bíblica do Capítulo 13 de I Coríntios, que em algumas traduções diz algo como “Agora vemos através de um espelho e de maneira confusa, mas depois veremos face a face“. Esse grifo que faço é o que muda bastante dependendo da tradução, mas a versão utilizada por Bergman — Suécia, 1917 — tinha exatamente a inscrição que dá título ao filme e que pode tanto manter o seu sentido original, de descoberta de algo supremo (que pode ser Deus ou o próprio sentimento de amor/maturidade que o final do capítulo indica) quanto transpor esse simbolismo para uma leitura psicanalítica do “eu” através do mito de Narciso, refletido na água, encantado pela beleza desse outro que [não?] era ele, “enlouquecendo” por esta forma idealizada, mergulhando para alcançar este “eu” e morrendo “dentro de si mesmo” como consequência de “atravessar o espelho”.
O diálogo entre religião, psicologia e psicanálise está em voga o tempo inteiro no filme e é marcado pela relação complicada entre os quatro personagens, representando ao mesmo tempo a totalidade do que é criado e a totalidade do que é perecível. A composição de cada um deles como uma parte da psique humana e uma parte das visões sobre a concepção de Deus está escancarada para quem quiser ver, embora seja comum encontrarmos leituras que tendem a seguir por apenas um caminho, talvez prendendo-se ao fato de que este é o primeiro filme de uma trilogia nomeada apenas anos depois como a “Trilogia do Silêncio” ou “do Silêncio de Deus”, completada por Luz de Inverno (1963) e O Silêncio (1963). Na obra, porém, há muito mais do que os questionamentos humanos e as inúmeras possibilidades de se relacionar com alguém (do possível — ou óbvio? — incesto entre irmãos até o pai que utiliza com curiosidade a doença da filha para escrever um livro) ou com o divino.
A escolha de quatro personagens denota uma construção sólida e fugaz da existência, que une coisas terrenas e sobrenaturais, vivas e mortas, acolhedoras, misteriosas ou ameaçadoras. Lembremos que quatro são os pontos cardeais, os ventos, os pilares do Universo, as fases da Lua, as estações do ano, os elementos, os humores, as letras do nome de Deus, as letras no nome do primeiro Homem, as pontas da cruz… A mudança de estados emocionais do quarteto coloca cada um como um pequeno Universo multipolar, e não bipolar, como normalmente caracterizam Karin, em excelente interpretação de Harriet Andersson roubando todas as cenas em que aparece. Essa multiplicidade de personas é melhor notada porque o cenário é praticamente um, a casa, centro do Universo; o ambiente é um, a ilha, centro espiritual primordial; e o formato do filme é híbrido de cinema e teatro, centro de representação para edificação. Curiosamente, há uma encenação bastante cínica, uma espécie de denúncia metalinguística na primeira parte do filme.
Originalmente, Através de um Espelho se chamaria Papel de Parede e suas origens estão em outro filme de Bergman, Prisão (1949), cujo roteiro original tinha uma cena com um pintor louco que convidava a jovem Birgitta Carolina para ver algo. No momento exato do nascer do sol, a moça ouvia assobios e uma sombra esquisita se formava no papel de parede. Segundo o próprio Bergman disse em entrevista, “uma multidão de rostos movediços, curiosos, excitados; rostos que riem, rostos raivosos… mas tudo permanecia difuso e não passava de movimento“. A cena se mostrou impossível de ser representada visualmente e acabou sendo cortada no final. Porém, o gérmen da representação no papel de parede se manteve na mente do diretor e ele sabiamente transferiu o drama para uma jovem perturbada, dando o papel a Harriet Andersson.
Pela primeira vez em sua filmografia, o diretor colocava uma mulher no extremo de emoções e agindo diretamente sobre os outros personagens, tendo todo o enredo girando em torno dela e a partir de ações dela. Mesmo fazendo “filmes sobre mulheres” desde a sua estreia em Crise (1946), o cineasta nunca chegara a um patamar tão libertador para uma de suas protagonistas e nem as tinha colocado em um número tão grande de linhas divisórias comportamentais, basta lembrarmos, a fim de comparação, da cena onde Karin ouve o helicóptero chegando e vê o “Deus-Aranha” saindo da parede, querendo penetrá-la. A colocação da aranha aqui não é nada vazia. Como tecedora, ela pode simbolizar a geração de ilusões, de realidade suprema ou, ainda, como demiurgo, servir como um presságio, um guia da alma. Na psicanálise, a aranha pode ser símbolo de introversão e narcisismo, da absorção do ser pelo seu próprio centro, como já aludimos ao falar de Narciso e como o próprio título do filme nos sugere.
O trabalho visual do fotógrafo Sven Nykvist é essencial para a construção desses sentimentos, tanto na perfeita iluminação realizada com poucos recursos, quanto na angulação e formas de capturar elipses de lugar e tempo, recurso da direção aplicado pela fotografia e pela montagem (uma das mais complicadas para Bergman e Ulla Ryghe) e que pode confundir ou enraivecer alguns espectadores. Trata-se de algo que eu particularmente não gosto, por achar que atrapalha um pouco o filme, mas devo reconhecer que faz sentido para aquilo que o roteiro nos quer mostrar.
Observem que em momentos onde passamos de uma cena ou sequência para outra (a estrutura formal da obra é a de uma peça de teatro), pode haver uma mudança total das condições da atmosfera ou da posição da personagem de Karin no cenário. Isto só acontece nos blocos onde ela faz parte. Pode parecer estranho, mas ao lembrarmos que o filme é sobre alguém com distúrbio mental, a noção de tempo está completamente alterada para esta pessoa (a excelente cena da barca, entre David e Martin, vira noite quando passamos para Karin e Minus voltando com o leite. A saída de Karin da praia em direção à casa, de repente, faz com que ela esteja em um barco abandonado na costa; e assim por diante…). Ou seja, as bagunças na percepção espaço-temporal têm sentido porque são o ponto de vista de Karin, que não mede esse passar do tempo como nós. Faz sentido no filme, mas a meu ver, depõe contra o encadeamento das cenas.
A conversa final entre Minus e o pai dá conta de um aprendizado traumático que rapidamente é floreado pelo inconsciente do jovem. Ele diz “A realidade se revelou e eu desmoronei. É como um sonho. Qualquer coisa pode acontecer. Qualquer coisa“. E o pai tenta aplacar a dor do filho, assim como faz a si mesmo, falando da manifestação de um Deus até então ausente. Ele pode estar no amor, por quê não? Lembram-se da passagem bíblica da qual o título do filme foi tirado? Ela está em I Coríntios 13:12. Sabem, porém, o que diz no versículo 1 deste mesmo capítulo? Isto aqui: “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine.“
A revelação é sugerida e Minus, talvez por inocência ou emoção demasiada, diz que o papai (biológico ou divino?) falou com ele. Esse mesmo pai se afasta, deixando o rapaz com olhos arregalados, sorriso no rosto, o sol no horizonte e o movimento Sarabande da Suíte para Violoncelo nº2 em Ré Menor, de Bach, fechando as cortinas daquele último ato. Karin já havia mergulhado em seu espelho. Martin estava mergulhado em Karin. David estava mergulhado em seu próprio ego artístico e Minus… bem, Minus parece ter encontrado dois pais para se espelhar, um na Terra e outro em algum lugar onde o amor estiver. Se havia algum grande desejo do garoto, ele foi realizado naquela conversa e a forma como o roteiro é encerrado deixa Minus como um fio de possibilidade aberta para que Deus, amor, esperança, felicidade existam do outro lado. Algo que só se pode ver através de um espelho.
Através de um Espelho (Såsom i en spegel) — Suécia, 1961
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Ingmar Bergman
Elenco: Harriet Andersson, Gunnar Björnstrand, Max von Sydow, Lars Passgård
Duração: 89 min.