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Crítica | Millennium – Os Homens que Não Amavam as Mulheres (Trilha Sonora Original)

por Lucas Nascimento
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estrelas 5,0

Com uma merecida vitória no Oscar pela marcante estreia nos cinemas, a dupla Trent Reznor e Atticus Ross se revelara como um raio engarrafado no quesito trilha sonora cinematográfica. É óbvio que o diretor David Fincher não os deixaria descansar para seu próximo projeto, que começava a rodar as câmeras imediatamente após o lançamento de A Rede Social: sua adaptação americana de Millennium – Os Homens que Não Amavam as Mulheres. E se uma jornada de dois amigos lançando um site de relacionamentos já rendera uma música absolutamente sombria e devastante, o que esperar de uma história de serial killers estupradores em uma ilha congelante na Suécia?

What is Hidden in Snow…

A resposta pode parecer um tanto óbvia, mas a inspiração base de Reznor e Ross foi de encontrar o som do gelo.

Mas chegaremos a ele depois. Primeiro, devemos falar sobre a faixa que abre o extenso álbum de 3 discos e 37 faixas. A ouvimos pela primeira vez no sensacional teaser trailer do filme lançado em Junho de 2011, e ela serve de tema para a sequência de créditos de abertura mais incrível dos últimos tempos. Sim, estamos falando do cover de Karen O para Immigrant Song, icônica canção do Led Zeppelin. O tom muda radicalmente para um heavy metal pancada que aposta no vozeirão quase sexual de Karen O e em uma guitarra muito mais agressiva. É o tipo de música que Lisbeth Salander ouviria, e arrisco a dizer que prefiro essa versão do que a do Led – e isso vem de um fã confesso do grupo…

Então chegamos ao início do longo e vasto trabalho da dupla para Millennium. Assim como em A Rede Social, o swarmatron será muito utilizado para criar sons eletrônicos orgânicos e abstratos, muitas vezes agindo mais como paisagem sonora foley (um efeito sonoro) do que uma melodia apreciável enquanto pegamos estrada para o interior. É uma trilha muito mais densa e atmosférica, despertando com She Reminds me of You, uma peça que é quase palpável e grita inverno em seus sons retorcidos que remetem a uma guitarra (talvez um baixo? um cello?) e o uso controlado de seu xilofone, que acaba por construir uma inquietante tensão. É usada sabiamente em dois momentos distintos, com a chegada de Mikael Blomkvist na residência dos Vanger e a tortuosa caminhada de Lisbeth pelas ruas de Estocolmo após seu brutal estupro. Se há um tema que define a Suécia de David Fincher, é este.

E retornando à proposta de encontrar o som do gelo, a grande evidência desse experimento está em Hidden in Snow, que preenche o momento em que Henrik Vanger compartilha com Mikael a história do desaparecimento de sua sobrinha, Harriet, nos levando a um enigmático flashback. A faixa é formada por batidas, xilofones e algo que lembra um teclado quebrado, criando ao mesmo tempo a sensação de medo do desconhecido, e a curiosidade em decorrência do mesmo; tanto que a faixa também é utilizada com louvor durante uma das sequências de investigação. Um efeito similar de pavor e curiosidade é atingido com How to Brittle Bones, faixa agitada na qual Mikael descobre as flores emolduradas.

Falando em investigação, People Lie All the Time é a terceira faixa com a qual nos deparamos na tracklist, e marca a cena na qual Mikael analisa documentos antigos sobre o acidente de carro que serviu como distração para o sumiço de Harriet. São pancadas em um órgão pesado que logo transformam-se em uma percussão similar a de um relógio, ao mesmo tempo em que o swarmatron ajuda a manter o senso de instabilidade. Por outro lado, The Seconds Drag é minimalista e muito abstrata, quase remetendo a uma torneira pingando; de modo acelerado, claro. E Pin and Mounted é uma sucessão de batidas agudas e animadas, fornecendo mais ânimo para o momento em que os protagonistas se aproximam da resolução do sombrio mistério.

Mas quando falamos de puras trevas, o álbum tem toda uma seção sobre o assunto. De cara, With the Flies é a mais perturbadora por abusar do caráter abstrato do swarmatron e criar algo que só poderia ser definido como um barulho, e move o personagem de Nils Bjurman e as duas cenas de estupro do filme. É um zunido nervoso e incompreensível, com o irritante acréscimo do efeito sonoro de uma mosca, como se ela repentinamente invadisse nossos ouvidos. Contribui muito para o desconforto de ambas as cenas, especialmente aquela em que temos um foley de aspirador de pó ao fundo, que inteligentemente mescla-se com a faixa musical.

Perihelion acaba se entregando ainda mais ao abstrato, assemelhando-se com uma garra arranhando os instrumentos de Reznor, e seguindo fielmente a proposta de som do gelo. Já seu oposto, Aphelion (repito, a dupla merece créditos pela criatividade na hora de nomearem suas faixas), começa com algo pesado que lentamente vai se construindo com uma batida aguda, sendo eficiente para o momento em que o assassino finalmente se revela e conduz Mikael para um cômodo incerto.

The Girl

Lisbeth também tem sua própria dose de trevas, com sua introdução se dando ao som de We Could Wait Forever, faixa quase ambiente que prova o poder orgânico do swarmatron: é quase como uma pulsação, o som que ouvimos quando engolimos seco e limpamos os ouvidos; algo que seria difícil de se atingir com um sintetizador digital padrão. Para a força vingativa de Salander, Of Secrets mergulha ainda mais no orgânico para um som predominante de algo parecido com a estática de uma televisão, que vai lentamente dando espaço a um mix sinistro do swarmatron.

O lado mais leve de Lisbeth também surge em momentos distintos. O primeiro deles é quando a personagem parte em uma jornada ambiciosa para derrubar as contas bancárias de um político corrupto, logo no ato final do longa. A faixa é algo que difere quase que inteiramente de todo o resto do álbum, e de uma forma positiva: The Heretics. É uso brilhante de xilofones com o swarmatron, traçando uma face divertida e até jovial para Lisbeth quando esta assume a identidade de Irene X, além de fornecer incrível velocidade à complexa sequência.

E, claro, o comovente e inesperado lado emocional de Salander. What if we Could? opta por uma delicada peça de piano com pouquíssimas notas, que trazem o efeito de algo bonitinho e que aqueça a gélida narrativa musical que acompanhavamos. Seu uso é pivotal durante duas cenas: a primeira transa entre Lisbeth e Mikael, e a conclusão do filme, onde a peça de piano vai sendo invadida pelo sinistro swarmatron, transformando a felicidade da protagonista em encontrar seu grande amigo em um irreparável coração partido dado o contexto da situação. Muito da personagem é perfeitamente bem explorado por todas essas diferentes faixas.

…Comes Forth in the Thaw

Além do cover de Immigrant Song, apresentada no teaser trailer, temos o raro cenário em que as demais faixas eletrônicas dos trailers aparecem na listagem! An Itch começa com um piano sombrio para depois soar como algo saído de um fliperama diabólico dos anos 80, sendo a tema do primeiro trailer completo do filme. Já o lendário trailer de 8 minutos exibido no Festival de Toronto traz The Splinter e a calma The Same as the Others, mas o destaque é para a excelente A Thousand Details, onde um piano ligeiro se perde em meio a uma série de batidas sintetizadas. Um ótimo trailer, por sinal.

E se o álbum inicia-se com o cover feminino de uma música famosa, uma boa rima se estabelece quando nos deparamos com a versão de How to Destroy Angels para Is Your Heart Strong Enough?, balada amorosa de Bryan Ferry. Curiosamente, a música entrou como uma homenagem de Fincher à atriz Rooney Mara, que constantemente ouvia a canção durante as gravações. O cover adota os elementos eletrônicos desgastados que ouvimos ao longo do álbum, e a voz de Mariqueen Maanding (esposa de Reznor) é sublime, fechando em caixa alta o álbum e o filme em si, sendo um alívio ouvir uma canção tão bela após tantas desventuras sombrias.

Não tenho dúvidas de que a trilha de Millennium – Os Homens que Não Amavam as Mulheres é um dos trabalhos mais atmosféricos e abstratos que o cinema Hollywoodiano já viu em seus últimos anos, ousando ainda mais do que a já inovadora música de A Rede Social. É uma pena que o trabalho de Reznor e Ross tenha sido ignorado pelo Oscar (apesar de ter faturado um Grammy), mas os sons distorcidos de uma Suécia perigosa sempre me virão à mente durante as gélidas tardes de inverno…

The Girl with the Dragon Tattoo (Soundtrack)

Composto e conduzido por Trent Reznor e Atticus Ross
Gravadora:
The Null Corporation, Mute e Madison Gate Records
Estilo: Trilha Sonora/Eletrônico/Pós-Industrial/Experimental
Ano: 2011

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