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Crítica | Veado Assassino, de Santiago Nazarian

Um presidente de extrema-direita é morto por um adolescente não binário.

por Luiz Santiago
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Histórias de terrorismo político, atos de violência ou crimes cometidos por “pessoas e grupos improváveis” sempre me pareceram literariamente instigantes, porque os diferentes caminhos de sua construção narrativa tendem a criar surpresas muito boas. Quando bati o olho na sinopse desta novela de Santiago Nazarian, Veado Assassino (2023), sabia que estava diante de uma dessas obras-surpresa, e, ainda bem, não fui decepcionado pela história. Inteiramente composto por diálogos de um interrogatório, o livro nos conta como Renato, um não binário de 16 anos, assassinou o presidente do Brasil, o “fascista, machista e homofóbico” que estava disputando a reeleição logo após a mortandade da COVID-19.

De imediato, é possível fazer paralelos claros com a História do Brasil entre 2018 e 2022, mas em nenhum momento o nome de um determinado presidente é citado, e para ser sincero, este não é exatamente o ponto do livro. A semelhança com a realidade e o fato de toda a obra estar amarrada à jornada recente do país, não a torna uma fanfic político-social. O drama está colocado em formato exigente, cobrando do autor um domínio imenso de ritmo, de conteúdo dos diálogos e de composição de cenas e sequências que façam com que o público tenha acesso a situações do presente e do passado de Renato, bem como das principais pessoas com as quais ele teve contato — dos familiares, aos amigos que fez jogando online. Veado Assassino não se firma como uma sátira pura e simples. É, acima de tudo, uma provocação aos que concordam com o não binário criminoso. É uma cutucada em dois grandes aspectos ideológicos.

Nazarian conseguiu criar uma ampla base de informações através de diálogos curtos, cínicos e referenciadores da cultura pop. A prosa fortemente imagética do autor se agarra ao vocabulário da juventude dos anos 2020, e cerca hábitos, vícios e manias dos jovens politizados, em diversos espectros: extrema-direita, extremismo/fanatismo religioso, esquerda revolucionária e liberal. Mas o texto não traz esses alinhamentos políticos minuciosamente comentados ou explicitados. Aliás, essas definições são minhas, como leitor e crítico, mas não do autor. O que quero dizer é que Veado Assassino é propositalmente um “livro de época” em todas as suas características, e pode ser considerado uma cápsula literária que envelhecerá como uma curiosa representação de um tempo polarizado, e de tão bem feita, retratando de forma material o pensamento e os fatos de uma época, permanecerá atualizado, já que os nichos ideológicos retratados não dão absolutamente nenhuma mostra de que morrerão neste século ou no próximo.

As provocações do interlocutor de Renato ajudam a quebrar a seriedade de alguns momentos, e vale aplaudir a capacidade de retomada de assuntos na prosa de Nazarian, que amarra todos os pontos principais e não deixa nenhum assunto basilar do livro em aberto. É claro que, durante a leitura, especialmente no final, eu encontrei trechos que não pareciam estar no mesmo nível do restante do livro, e devo dizer que a explicação para o que está de fato acontecendo me deixou com sentimentos mistos. No entanto, eu estava tão envolvido na narrativa, que não tive nenhum problema em abraçar a explicação e seguir adiante, mesmo com o sentimento de estranheza. O autor emenda o retrato geral desse adolescente a um pensamento mais filosófico sobre a vida e a morte, e sobre as consequências que se deve assumir após cometer um ato tão terrível quanto o assassinato de uma pessoa, por pior que ela seja.

A reflexão percorre uma linha ética, política e religiosa, composição que Santiago Nazarian soube utilizar com sabedoria para não terminar Veado Assassino com moralismo barato (do tipo “o Universo puniu o crime“) e nem com niilismo expandido ou aquela indiferença irritante que vemos em tantos personagens supostamente politizados num sem-número de narrativas por aí. Aqui, as contradições do discurso e dos atos de Renato são o tempo inteiro ressaltadas e discutidas, e ele é chamado de hipócrita e tem muitas de suas ideias postas à prova (como sendo falsas mesmo) em diversos momentos. O engajamento político “de orelhada“, à esquerda e à direita, é a alfinetada final do escritor para os grupos políticos, que simplesmente repetem frases prontas e não conseguem explicar de maneira racional as escolhas. Do lado simbólico, Renato faz o que todo brasileiro já quis fazer com os inimigos da democracia e da humanidade. Já do lado prático, ele transformou a sua atitude em algo com consequências impossíveis de se projetar. É tão interessante quanto o mistério da morte: ninguém sabe o que verdadeiramente acontecerá depois. E ainda bem que o livro acaba justamente nesse ponto.

Veado Assassino (Brasil, 2023)
Autor: Santiago Nazarian
Editora: Companhia das Letras
Capa: André Hellmeister
112 páginas

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