“Eu vou precisar usar muita ciência para sair daqui.”
Ridley Scott vinha em baixa na carreira desde O Gângster, em 2007, de lá para cá, somente filmes medianos para baixo – com a ilustre exceção de Prometheus, que embora a maioria deteste, eu considero seu filme mais corajoso em anos –, então o diretor precisava de algum modo voltar à boa forma, pelo menos aos olhares gerais do público. Eis que surge a oportunidade da adaptação do livro homônimo Perdido em Marte, o perfeito momento para isso acontecer. Terreno confortável da ficção científica – em alta com pelo menos um grande símbolo por ano (Gravidade em 2013, Interestelar em 2014) – junto a um material já modernizado e de fácil processo adaptativo pela sua linguagem mais descontraída e assumidamente aventuresca, que permitiram ao cineasta facilmente reconquistar seu lugar de apreço com o público sem a exigência de imprimir cargas dramáticas mais densas, o que ele não estava conseguindo fazer no seus últimos longas.
E é justamente o que ocorre, Scott abraça essa “zona de conforto” e abandona qualquer princípio de discussão mais filosófica sobre humano e o espaço para dar abertura a um blockbuster comercial de sobrevivência intergaláctica. Aliás, um dos grandes fatores que fazem esse filme ser tão divertido talvez seja essa pouca interferência autoral da mão da direção em contraponto à calculada proposta do roteirista Drew Goddard, em saber vender a adaptação no campo popular sem abandonar seus princípios próprios de escrita. Vindo de Lost, Goddard era o nome perfeito para fazer esse processo, pois saberia entregar criativas situações de survival, explicações científicas com base realista o suficiente para serem plausíveis, mas didaticamente ambíguas para ter a abertura de interferência da fé para tudo dar certo no final, assim, sustentando uma mínima articulação dramática dentro de um desenvolvimento de personagem bem humano.
Com a ajuda da montagem, Goddard consegue enxugar bem qualquer perambulância mais burocrática dos processos complexos por trás de um resgate tão distante, e cria até um jogo entre ele (simbolicamente representado pelo personagem do Jeff Daniels) e a força maior de um discurso humanista (representado por Chiwetel Ejiofor, Sean Bean, dentre outros personagens). Por mais que essa lógica maniqueísta não seja nada sutil, existe uma noção de limite desse conflito, onde o personagem de Daniels se vê aberto às soluções propostas pelos demais – por mais difícil que pareçam em execução -, e essas soluções apresentadas por eles nunca ultrapassam totalmente a verossimilhança científica ou ética por trás daquela burocracia existir. No fim, é um sustentáculo bom de conflito para as interações terrenas, um grande elenco é chamado para que essas sequências não se tornem barrigas na narrativa, mas seus personagens não chegam a ser tão desenvolvidos para não engolir a presença do principal astro.
Aliás, uma outra boa solução do roteiro para conseguir maior acessibilidade ao público é a estrutura de vlog do Matt Damon literalmente perdido em Marte. O Youtube estava em seu auge naquele momento justamente por todo mundo estar querendo narrar sua rotina em vídeo para os curiosos. Então, que jeito melhor de estabelecer a comunicação com o público do que uma quebra da quarta parede? Uma quebra plausível pelo passatempo oferecido ao personagem para não enlouquecer sozinho, e consequentemente uma boa desculpa para que o caráter expositivo dos diálogos se torne natural na proposta. Inclusive, o ator consegue vender muito bem essa naturalidade de conversar com a câmera através de uma personalidade positivista e “zuera”, para literalmente tentar incorporar uma lógica de canal no Youtube. O grande problema aí está nas sequências necessárias para não deixar o filme tão “Disney”, onde tudo dá errado para o seu lado e ele precisa demonstrar desespero.
As elipses constantes que a narrativa utiliza junto à forma como Ridley conduz essas cenas tornam-as quase anomalias dentro do filme e as fazem desequilibrar um tanto no tom. Pois fica nítido ser uma cena “preparada” para um momentinho bem específico, tornando-se previsível, logo, sem impacto e artificial, pois sabemos que não haverá fator consequencial algum ao personagem. Não chega a se tornar um prolongamento desnecessário, pois o ritmo nunca se perde e funciona como mais uma parte à aglutinação de expectativas para a apoteótica saída. Mas, veja bem a ironia: são talvez os momentos de maior autoridade do Scott no filme – a exemplo da única cena assim que parece orgânica, que é logo após ele acordar da tempestade, quase sem oxigênio e furado por um pedaço de metal que tem que tirar sozinho –, o que só prova o quanto ele realmente estava confortável no projeto, só usufruindo da assinatura orquestrada por terceiros, seja o autor do livro que criou a história, seja Goddard que deu a unidade ao filme.
Portanto, ainda que coloque Perdido em Marte como um filme muito bom e bem divertido, ele não exatamente representa a volta de Ridley Scott a uma boa forma, pois a ausência de seu estilo se torna uma virtude, e a presença um problema. Isso fica nítido nas piadinhas que sempre rolam, quando é uma piada que naturalmente surge em meio aos diálogos funciona, já as piadas que vão finalizar uma cena – ou seja, a cena estava sendo conduzida para ela – não funciona, porque fica forçada dentro do estilo do diretor. O mesmo vale para a seleção de músicas pop, quando surge diegeticamente (quando o personagem e o público estão escutando) funciona, quando surge não diegeticamente (aquelas que somente a gente escuta e não o personagem) fica como se Scott estivesse forçando um ar de “maneirinho”.
É um filme anêmico entre roteiro e direção, com problemas que não atrapalham exatamente na sensação de divertimento ou empolgação, tampouco deixam de ser perceptíveis ou incômodos, só não são tanto pela maioria ser facilmente contornável pelas ótimas intenções de good-movie, e isso, inegavelmente, ele consegue ser.
Perdido em Marte (The Martian | EUA, 2015)
Direção: Ridley Scott
Roteiro: Drew Goddard, Andy Weir
Elenco: Matt Damon, Jessica Chastain, Kristen Wiig, Jeff Daniels, Michael Peña, Sean Bean, Kate Mara, Sebastian Stan, Aksel Hennie, Chiwetel Ejiofor, Benedict Wong, Mackenzie Davis, Donald Glover, Chen Shu, Eddy Ko
Duração: 141 minutos