Como falar de Cosmos sem deixar a nostalgia bater forte? Simplesmente não tem como, pelo menos não para mim, que vivi os anos 80 como um garoto fascinado por todos os aspectos científicos, que decorava o nome dos planetas e estrelas, que sabia tudo sobre dinossauros e sobre animais em perigo de extinção. Um jovem que, apesar de ter lido avidamente A Origem das Espécies e discutido, fascinado, seu conteúdo com todo mundo ao seu redor, nunca se tornou um cientista – ou nada nem parecido disso – mas que tem o mais profundo respeito por todas as formas de ciência, pesquisa e descobertas.
E Cosmos teve grande influência nessa minha curiosidade por tudo relacionado à vida no planeta e fora dele. Foi um programa que vi tantas vezes quanto ele foi reprisado na TV aberta – que era só o que existia na época – e que revi logo quando foi finalmente lançado em forma de caixa de DVD (demorou muito tempo, por problemas de direitos autorais da música de Vangelis, que serve de trilha para muitos episódios) e que revi novamente, agora, para escrever a presente crítica.
Mas então, volto à pergunta: como escrever uma crítica de verdade sem se deixar levar pelos ventos nostálgicos?
A resposta é simples: não tem como. Impossível mesmo. Procurem em outro lugar se quiserem um olhar realmente objetivo sobre essa tão amada série.
Cosmos, apesar de não ter sido uma produção exatamente pioneira, pois já havia séries anteriores, notadamente da BBC, abordando, de certa forma, o mesmo tipo de assunto, ela foi sim um divisor de águas tamanha sua penetração e alcance mundial. Produzida no finalzinho da década de 70 pela KCET, ex-filial de Los Angeles da televisão pública americana PBS, a série, composta de 13 episódios de 60 minutos cada um, custou mais de 6 milhões de dólares no total, valor esse vultuoso para uma série de TV com quase nenhum ator e de evidente tom educacional. E isso sem contar com mais 2 milhões de dólares gastos na promoção. Mas o dinheiro foi visivelmente bem gasto. Ainda que hoje, mais de 30 anos depois, qualquer um seja capaz de olhar os efeitos especiais de maneira perfunctória e esnobar, dizendo que não chegam aos pés do que existe hoje, o fato é que, para a época, eles eram absolutamente cativantes.
Estamos falando da década seguinte ao boom da ficção científica no cinema, com o primeiro Star Wars, em 1977 e o primeiro Star Trek e Alien, em 1979. E Cosmos marcaria, com chave de ouro, a aurora oitentista, com suas várias ficções científicas marcantes e filmes de aventura. Era também uma época que os jovens de hoje também talvez não consigam nem imaginar, sem internet, sem informação fácil. As bibliotecas com livros e enciclopédias eram lugares realmente visitados – mesmo aqui, no Brasil, onde os governos nunca deram real valor ao conhecimento – e não substituídos pela informação fácil, e muitas vezes errada, que temos acesso com alguns cliques. Cosmos veio para suprir uma demanda de conhecimento científico simplificado para as massas, algo que, hoje, é literalmente lugar-comum (ainda bem!) com dezenas de produções literárias e audiovisuais magníficas sobre ciência que inundam nossas televisões, computadores e estantes. Mas sem Cosmos, nada disso teria sido possível.
Na verdade, sem Carl Sagan é que nada disso seria realmente possível. Sagan, falecido em 1996, foi um sensacional astrônomo, astrofísico, cosmologista e talvez, principalmente, autor americano que tinha o toque de Midas em relação à comunicação de conceitos científicos. Ele sabia enfatizar conceitos que hoje todos talvez saibam de cor e salteado, como sua famosa frase “o número total de estrelas no Universo é maior do que todo os grãos de areia em todas as praias do planeta Terra”. Seu jeito de falar, como narrador em Cosmos, é extremamente peculiar, estranho de verdade e difícil de se acostumar, mas, quando o espectador finalmente se acostuma, não quer mais ouvir comentários científicos saindo de outra boca. Sagan narra Cosmos com genuíno conhecimento de causa, mas, ao mesmo tempo, uma humildade impressionante, de realmente fazer o queixo cair. Além disso, esse sensacional astrônomo, mesmo depois de décadas de pesquisa e muitas descobertas, era capaz de passar a nós, pobres espectadores leigos, uma impressão de embasbacamento com os conceitos incríveis de buracos negros, supernovas, “bilhões sobre bilhões” de estrelas, quasares, viagens interplanetárias e toda a imensidão do espaço. Ele olha para fora com verdadeira estupefação e absoluta reverência aos conceitos e teorias científicas de forma que nós possamos olhar para dentro e entender nosso efetivo lugar no mundo, nossa insignificância cósmica que, por si só, faz de nós, humanos, um verdadeiro milagre no universo, mas um milagre científico, só para deixar bem claro.
A série, que começa com o episódio Os Limites do Oceano Cósmico (The Shores of the Cosmic Ocean), usa o conceito de embarque em uma espaçonave cósmica, sem barreiras de onde pode ir. Com isso, Sagan nos leva tanto para o espaço como para a biblioteca de Alexandria (a original), trabalhando também os estudiosos clássicos que revolucionaram a ciência de nosso pequeno planeta azul. Segue-se um de meus episódios favoritos – As Origens da Vida (One Voice in the Cosmic Fugue) – que, como o nome dá a entender, trabalha as teorias de Darwin e outros estudiosos, mas sem deixar de aplicá-las para potencialmente responder à eterna pergunta: há vida lá fora?
O terceiro episódio, A Harmonia dos Mundos (The Harmony of the Worlds), é um educado soco no estômago de quem acredita em astrologia. Fazendo a diferenciação entre essa brincadeira e astronomia, uma ciência séria, Sagan fala de Copérnico, Kepler e até povos indígenas e suas observações dos astros. Se alguém realmente inteligente e que acredita (de verdade) em astrologia continuar acreditando nisso depois de assistir esse episódio, o adjetivo inteligente não mais será aplicável a essa pessoa.
Em Céu e Inferno (Heaven and Hell), diferente do que o título pode dar a entender, Sagan não fala de religião versus ciência. Aliás, Sagan era um homem inteligente e ele sempre soube abordar esse “conflito” de maneira elegante, mas incisiva, sem realmente deixar os religiosos de punho em riste contra ele. Mas voltando ao episódio, Sagan fala, na verdade, dos impactos de cometas e meteoros na Terra e em outros planetas, começando pelo gigantesco impacto de um cometa em 1908, na Sibéria (Tunguska). É impossível não se deixar impressionar pelos dados científicos que o narrador/cientista traz aos espectadores.
Eu poderia falar ainda da abordagem literário-científica que Sagan faz sobre Marte no 5º episódio, Os Segredos de Marte (Blues for a Red Planet); o paralelo histórico entre as grandes navegações e as viagens espaciais no 6º episódio, Histórias de Viajantes (Traveller’s Tales); ou mesmo sobre suas reminiscências de infância levando-o a descortinar como a Via Láctea foi interpretada ao longo dos milênios em A Espinha Dorsal da Noite (The Backbone of Night), o 7º episódio, mas eu não pararia mais de escrever. A grande verdade é que a abordagem séria, mas simples; cientificamente correta, mas poética e a fascinação de Sagan por tudo que fala, como se fosse uma criança de olhos esbugalhados sorvendo conhecimento na medida em que ele chega é de literalmente se tirar o chapéu e merece ser vista e revista por qualquer pessoa, seja ela mais afeita à ciência ou à religião, ou mesmo no meio do caminho, pouco importa.
Alguns podem torcer o nariz por achar que os conceitos e teorias científicas apresentados em Cosmos já seriam ultrapassados em razão do tempo, mas é prazeroso notar que não. A grande maioria do que Sagan fala é surpreendentemente moderno e ainda válido e a série funciona como um primeiro passo para o conhecimento de conceitos científicos complexos. Quem tiver a oportunidade de assistir na edição em DVD (infelizmente indisponível no Brasil), ainda terá a vantagem de legendas explicativas e “atualizadoras”, ou seja, com comentários que dão nova abordagem a conceitos e teorias já realmente ultrapassadas. Um excelente bônus. Há também o livro de mesmo nome, escrito por Sagan também em 1980, que funciona como um ótimo companheiro para a série, esse sim disponível no Brasil e cuja leitura recomendo.
Posso nunca ter seguido uma carreira relacionada com a ciência – acho que não teria capacidade – mas Cosmos abriu meus horizontes desde tenra idade, horizontes esses que tento a cada dia ampliar ainda mais, além de mostrar às minhas filhas que há muito mais do que vemos em nosso dia-a-dia.
Carl Sagan, muito obrigado!
Cosmos (Cosmos: A Personal Voyage, EUA – 1980)
Showrunner: Carl Sagan
Direção: Adrian Malone e outros
Roteiro: Carl Sagan, Ann Druyan, Steven Soter
Elenco: Carl Sagan, Jaromír Hanzlík, Jonathan Fahn, Alan Belod, Jean Charney, Bill Grant, Bob Hevelone
Duração: 780 min.