Uma imagem que se fixa na retina e ali permanece, com seu resíduo perfeito e já em forma de memória e sentimento, nos olhos de um pintor, de um atento observador. Segundo o importante artista plástico polonês, Wladyslaw Strzeminski, biografado neste derradeiro filme de Andrzej Wajda, isto é o “afterimage“, o “depois da imagem“. Formulador da “Teoria da Visão”, Strzeminski foi um marco para a arte polonesa, sendo um dos primeiros pintores de vanguarda no país, co-fundando a Associação de Artistas e o Museu de Artes de Lodz, do qual era responsável pela famosa “Sala Neoplástica”.
Tendo seu momento construtivista e também teorizado sobre a relação entre imagem, sentimento, tempo e movimento (além da “Teoria da Visão”, Strzeminski criou o “Unismo”), o pintor, no período em que o filme se passa, era visto como um dos pilares das Artes na Polônia, tanto por sua obra já bem estabelecida quanto pelo amor que seus estudantes da Academia de Belas Artes de Lodz — instituição da qual também foi co-fundador — tinham por ele.
O foco do filme é a mudança política, social e cultural pela qual a Polônia passou durante o governo de Bolesław Bierut, que tornou o país cada vez mais alinhado ao idealismo comunista, às políticas coletivistas de Stálin e ao infame “realismo soviético” que vinha cerceando a arte na Rússia e depois URSS desde pouco depois da Revolução de 1917. A ideia de retirar de cena a arte “pequeno burguesa”, a arte que não apresentava nenhum viés ideológico (o viés do Partido, claro) ou mostrava a luta de classes, os trabalhos, o coletivo e seu amado líder, deveria ser proibida, apagada do ambiente urbano, dos museus, livros e Universidades, porque era perigosa. O expurgo artístico em nome de uma totalidade que só existia na cabeça dos chefes do Partido Comunista e seus servidores foi imposto (assim como uma série de outras coisas) à população, privada de poder escolher o que ler, ver, estudar, admirar.
Em seu último filme, Wajda não deixa para trás as críticas a este período de cercamento de liberdades em seu país natal, mas o faz através da vida de um artista, o que é bastante sintomático, porque ele próprio viveu e produziu no período mostrado no filme (anos 1950), e enfrentou, como qualquer artista polonês da época, os gabinetes, as reuniões oficiais, os depoimentos e ameaças dos dirigentes governistas. É também curioso que o próprio tema artístico do pintor cinebiografado (a imagem fixa no olho ou memória depois de vista pela primeira vez) seja utilizado pelo cinema de Wajda. Filmar os dissabores de Strzeminski foi, para o diretor, então com 90 anos, colocar um pouco de si mesmo e de seus próprios impasses históricos ao longo da vida e da carreira.
A reflexão sobre o legado, o desapego e a preocupação com coisas que antes pareciam não ter tanta importância aparecem em cena em momentos diferentes da película. Vemos o protagonista (muitíssimo bem interpretado por Boguslaw Linda) pintando, recebendo alunos, trocando algumas palavras com a filha e ditando o seu livro. É uma vida solitária e, nos últimos momentos, completamente entregue à arte, que ele vê cada vez mais dificuldade de exercer, já que a organização burocrática do regime ao mesmo tempo que o boicotava, criava situações que o impedia de obter o material para fazer aquilo que lhe dava sentido à vida. “Sem carimbo, sem venda“.
Infelizmente o roteiro de Andrzej Mularczyk investe bastante nos episódios dentro do filme e deixa mais solta a relação entre eles no todo da obra, de modo que a filha do pintor, por exemplo, acaba tendo mais um papel de impacto do que de coesão narrativa, já que o texto não explora a contento a relação entre os dois. A mesma coisa acontece com a passagem do tempo, que embora não atrapalhe, acaba não tendo uma boa mão da montagem. As melhores partes técnicas aqui são a trilha sonora, os figurinos e a excelente fotografia, que passa de uma leve exposição de luz e cor no início, para uma realidade mais escura, com planos mergulhados em cinzas e filtros azulados ou esverdeados, este último, sempre usado para o protagonista, marcando através da cor a sua convalescença.
Em seu canto do cisne, Andrzej Wajda fala sobre a permanência da arte e sua luta contra autoritarismos e barreiras de liberdade, independente de que lado político ou social esteja. Uma obra tocante e, infelizmente, cheia de indicações preocupantes para os nossos tempos, onde barrar, impedir e boicotar manifestações artísticas meio que se tornou a nova “bola da vez”. Um filme sobre o passado e o presente do exercício da arte.
Afterimage (Powidoki) — Polônia, 2016
Direção: Andrzej Wajda
Roteiro: Andrzej Mularczyk (baseado em uma ideia de Andrzej Wajda)
Elenco: Boguslaw Linda, Aleksandra Justa, Bronislawa Zamachowska, Zofia Wichlacz, Krzysztof Pieczynski, Mariusz Bonaszewski, Szymon Bobrowski, Aleksander Fabisiak, Paulina Galazka, Irena Melcer, Tomasz Chodorowski, Filip Gurlacz, Mateusz Rusin, Mateusz Rzezniczak, Tomasz Wlosok
Duração: 98 min.