Abrindo a Trilogia do Apocalipse de John Carpenter, completada por Príncipe das Sombras (1987) e À Beira da Loucura (1994), O Enigma de Outro Mundo deveria ter sido o trampolim para o cineasta alcançar o Olimpo de Hollywood, área VIP dos diretores que normalmente conseguem emplacar grandes sucessos de bilheteria e possuem maior facilidade para conseguir grandes orçamentos e, dependendo do caso, liberdade criativa para suas obras. Mas o infortúnio de ter sido lançado duas semanas depois de E.T. – O Extraterrestre e no mesmo dia que Blade Runner, o Caçador de Androides fez de O Enigma de Outro Mundo um fracasso de bilheteria, deixando Carpenter no Coliseu dos cineastas que lutam para conseguir produzir alguma coisa, o que não o impediu de continuar trabalhando. Todavia, imaginamos como sua carreira poderia ter sido diferente se este filme não tivesse sido atingido por um sintoma da época.
Mescla de ficção científica e horror, O Enigma de Outro Mundo é uma versão de O Monstro do Ártico (1951), filme que John Carpenter gostava bastante, assim como a um de seus diretores, Howard Hawks. Sendo, portanto, uma espécie de homenagem ao seu diretor favorito (e acredite, há muito de Hawks aqui, a começar pelo tiro dado na cabeça do norueguês no início do filme, no melhor estilo “essa terra é minha e ninguém invade!“) e um dos momentos decisivos de sua carreira, não é de espantar que o diretor tenha eleito este o seu favorito dentre os que dirigiu. E não é para menos.
Com roteiro baseado no conto Who Goes There?, de John W. Campbell Jr., o longa mostra o primeiro inverno de uma equipe de cientistas em uma base americana na Antártida. Já no início a atmosfera de medo é instaurada, primeiro pela música cheia de ostinatos de Ennio Morricone, que assume o padrão estrutural das composições de Carpenter em obras como Halloween: A Noite do Terror e Fuga de Nova York dando ao público todo o material sonoro, em notas graves e semi-tons, que ele precisava para temer o que vinha adiante.
Pela quarta vez trabalhando com Carpenter, o fotógrafo Dean Cundey adotou aqui uma paleta de cor azulada e frequência de iluminação bastante escura para todo o filme, coisas que se colocam já com bastante força no eixo temático construído em 10 minutos de projeção e que avança até as explosões finais. Os sinais mal interpretados (era o cachorro, era o cachorro!), a composição de planos fechados contrastando com alguns takes abertos mas sempre entrecortados por algo na frente e toda a ideia de isolamento são essenciais para aumentar o nível de paranoia dos personagens e de claustrofobia, não bastasse o espaço geográfico para isso.
É interessante observarmos que o roteirista Bill Lancaster não se preocupou em dar amplas motivações para os personagens. A bem da verdade, eles são pouco desenvolvidos no filme. Mas o impacto dessa ausência é muito pequeno no andamento da trama porque o roteirista e o diretor substituíram esse ponto por uma condução que alternava diferente focos de tensão, sempre fechando o ciclo com o ótimo Kurt Russell em cena ou com a criatura assimilando um novo hospedeiro, o que nos leva para a melhor e mais interessante sequência da fita, o momento onde todos estão dentro da base, desconfiados de que o colega pudesse não ser humano e prontos para estourar os miolos de alguém, ou fritá-lo.
Repare como a cena é construída cirurgicamente. Ela começa com um quase-motim para impedir que MacReady (Russell) entrasse na base, tentativa frustrada pelo caráter badass do personagem, que não só consegue entrar no lugar (tremendo de frio, com a barba enregelada e segurando uma bomba) como também toma as rédeas da situação, mais adiante, criando uma intricada forma de descobrir quem era humano e quem não era, um completamento final para a sequência que conta com desenho de produção marcante de John Lloyd e o famoso protótipo de Rob Bottin para a “criatura-Norris”.
Agora pare um pouco para pensar naquela criatura. Fala sério, aquilo é MUITO assustador. E nojento. E genial. Rob Bottin tinha 22 anos na época e era o “jovem estranho” da equipe, contratado após se oferecer para trabalhar com Carpenter e porque já tinha no currículo obras como A Bruma Assassina e Grito de Horror, o que o colocava em vantagem para criar esculturas e estruturas para rostos, dentes, tentáculos e corpos a serem utilizados na obra, que também contou com desenhos de Stan Winston e esculturas de Jim Kagel e Lance Anderson. O complemento para a filmagem da cena dentro da base (da criatura ao melhor estilo de Alien que sai da barriga de Norris até a bizarra cabeça-aranha) vai até os esforços da a equipe de pintura em matte e stop motion que moveram o enorme monstro misto de cachorro e humano saído do corpo de Blair, na reta final. Some a isso filmagens em velocidades diferentes e uma montagem em ritmo preciso e você tem cenas de tirar o fôlego.
Com um tema central bastante curioso — o contato com o outro pode me fazer mal — e boa exploração da ameaça em um ambiente que deveria oferecer segurança, O Enigma de Outro Mundo é daqueles filmes que nos prendem do começo ao fim e nos deixa horrorizados em vários momentos de sua projeção. Contando com ótima equipe de maquiagem/efeitos especiais e pouquíssimas falhas narrativas, a obra termina com uma visão niilista que coube como uma luva a toda a situação, dando-nos a oportunidade de pensar no destino dos personagens restantes*. Sem dúvida nenhuma, um filme que deixaria Lovecraft com um sorrisinho maligno no rosto.
* Embora tenha filmado um final feliz, Carpenter preferiu não utilizá-lo.
O Enigma de Outro Mundo (The Thing) — EUA, 1982
Direção: John Carpenter
Roteiro: Bill Lancaster (baseado na obra de John W. Campbell Jr.)
Elenco: Kurt Russell, Wilford Brimley, T.K. Carter, David Clennon, Keith David, Richard Dysart, Charles Hallahan, Peter Maloney, Richard Masur, Donald Moffat, Joel Polis, Thomas G. Waites
Duração: 109 min.